O fim da picada

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Suguru carregava três bolsas na volta do trabalho: uma na qual levava o laptop, carregador, cigarro e isqueiro, e as outras duas debaixo dos olhos, nas quais acumulava todas as noites mal-dormidas, as vontades arrefecidas, as volúpias envelhecidas e enfim, toda sua vida arrependida. Tudo lhe encharcando de cansaço.

Descia a rua sentindo o passo, passando pesado, pedindo o parar, polindo a pele até descascar.

Na cabeça continuava a martelação. Pregava os pregos, serrava as tábuas, descascava além dos abacaxis até às bananas do trabalho, naquela maior perturbação. Como queria uma cama! Se mudara do interior para a cidade grande há pouco, mas sabia muito bem como funcionavam as coisas depois de um dia cheio do expediente. E para sua surpresa, quando finalmente chegou no ponto de ônibus no fim da rua, um vagabundo pegara o melhor lugar no banco, onde o sol do fim de tarde é barrado pela sombra. Maldito.

Suguru o viu de longe mas sem acreditar. Ou talvez tenha visto e fingiu que não. Talvez tenha visto esperando ser o cérebro cansado somando 1 + 1 = 3. E para completar a desgraça que rodeava sua vida, quando se aproximou mais, lá estava ele: um homem com pouca ou nenhuma melanina no corpo. Dos cabelos da cabeça até, talvez, os pentelhos do saco, era tudo branco. Mas não o branco mistura de todas as cores, a fusão primordial. Era o branco da paz, da serenidade. Tudo o que Suguru estava detestando no momento. Era quase uma ofensa àquela hora da tarde um sujeito estar sentado de pernas abertas e postura relaxada. De certo não trabalhava. De certo só vadiava.

Suguru se sentou na outra ponta do banco, onde o sol anêmico lhe beijava intruso, invadindo os olhos, a boca, o nariz. Deixava a dor de cabeça doer mais um pouco, só de birra por todas as vezes em que sentara longe dele. Suspirou, agora ciente do corpo suado debaixo da roupa. Queria um banho, também.

— Ô lá em casa! — o maldito na outra ponta exclamou, em alto e bom som. Suguru talhou as sobrancelhas na face e o encarou. Estava louco? O homem usava óculos escuros e parecia fingir demência. Mas... quem estava louco? Suguru ou aquele protótipo de Jack Frost? Era Suguru quem delirava ter ouvido alguma coisa ou o homem realmente disse aquilo, do nada?

— Oi? — Suguru quis garantir. — Disse alguma coisa?

— Ô lá em casa, eu disse, pra você. — Continuava a olhar para a rua, covarde demais para encarar o rosto revoltado de Geto, ele pensou.

— Ah... — Suguru aliviou o talho da sobrancelha e soltou um ar preguiçoso — Acho que você não percebeu mas eu sou homem. As pessoas normalmente me confundem por causa do meu cabelo grande.

— Tá, e daí?

— E daí que sou homem, cara.

O outro homem sorriu.

— Quer dizer que se você fosse mulher o assédio que cometi seria mais aceitável?

— Que? Não! Era só o que me faltava, mesmo. — Suguru franziu o cenho e revirou os olhos incrédulo. Era o fim da picada. A cereja do bolo naquela comemoração de maiores tormentos consecutivos.

A figura na outra ponta soltou uma gargalhada cheia de soberba.

— Foi mal. Eu só queria me divertir um pouco.

— Hm. — Suguru murmurou, tentando dar por encerrado aquela conversa.

— Olha, eu não quis te ofender, tá legal? Não sei se você reparou mas eu sou cego.

Beleza, aquilo era realmente surpreendente. Ele arregalou os olhos e encarou sem medo o albino do lado. Se sentiu um idiota por não ter reparado na bengala dobrada que o homem segurava entre as mãos esse tempo todo. Mas o que deveria fazer com essa informação? Sinceramente, ele não estava com paciência para nada. Talvez devesse mandar aquele homem enfiar toda sua cegueira e inconveniência no lugar onde o sol não bate.

— Eu só queria dar uma cantada na primeira pessoa que chegasse. Talvez eu ganhasse na loteria e fosse uma mulher lindíssima. Mas também tinha a chance de ser um cara estressado e aí eu poderia acabar levando um soco. Sabe, tudo pela adrenalina e tals.

Silêncio.

— Você teve sorte que me pegou no meu dia menos estressado — Suguru falou, implacável.

— Tive azar, isso sim. Às vezes eu queria levar um soco pra ver se paro com essas bobagens.

Suguru sorriu. Não queria. Mas sorriu pela quebra de expectativa.

— Você é esquisito. — falou.

— Ai, obrigado. As pessoas normalmente começam a agir como se eu fosse uma criança depois que descobrem que eu sou cego. No fundo todo mundo me acha meio esquisito.

— Mas te acham esquisito por você ser cego ou por você dar cantada em gente aleatória no ponto de ônibus?

O homem deu outra gargalhada. Sem soberba agora.

— Vou refletir sobre isso. — ele disse e então...

Silêncio.

— Você vem sempre aqui? — começou de novo o homem, inquieto com as palavras.

— É, infelizmente.

— Mora onde?

— No leste da cidade.

O outro ajeitou a postura, sorrindo.

— Que coincidência! Eu também! É meio estranho porque nunca te vi por aqui. — ele falou e Suguru riu.

— É claro que nunca me viu. — Os dois riram. — É que eu me mudei pra cá recentemente.

— Entendi...

De repente, Suguru não sentia mais a bigorna do cansaço sobre suas costas.

— Me chamo Satoru Gojo. — falou ele.

— Suguru Geto.

— Então, Suguru Geto. Você é novo na área, eu já manjo daqui a bastante tempo... Quer sair qualquer dia desses?, pra eu te mostrar os melhores restaurantes que você pode levar sua namorada, claro.

— Não tenho namorada.

— Tá, e daí?

Suguru escondeu os lábios e pensou.

— Pode ser. — sorriu.

No Ponto de Ônibus | SatosuguOnde histórias criam vida. Descubra agora