Depois que a minha mãe teve câncer, ela começou a organizar um bazar todos os anos com as amigas. Um monte de mulheres vendendo pano de prato pra arrecadar dinheiro pra ala de oncologia infantil do hospital, pra comprar perucas para quem não tem grana, essas coisas. Pra falar a verdade, acho legal pra caramba que ela faça isso e, quando vi esse lado dela, achei que o envolvimento da Kay com caridade seria um traço que as duas teriam em comum e que elas fossem se dar melhor.
Eu sou muito ingênuo.
No fim do ano passado, em mais uma edição do Natal Fodido da Família Foster, onde se ganha dor de cabeça no lugar dos presentes, eu prometi pra minha mãe que iríamos ao bazar desse ano, pois ela cismou que eu seria uma atração, que o povo da igreja dela fosse ter algum interesse em um vocalista de banda de rock, mesmo que a Kay virasse um Martini atrás do outro enquanto fazia não com a cabeça e tenha me esculhambado depois. Mas cara, eu vivo uma vida de malabarista. Amo duas mulheres com um gênio do cão e isso exige um certo jogo de cintura. Eu e Kay estamos juntos há doze anos, já tivemos um baixo muito baixo, mas tirando isso têm sido doze anos incríveis e diria até que, com todo o espetáculo em que ela transforma tudo, temos o relacionamento mais tranquilo dentre os meus amigos. Eddie tem a vida afetiva mais fodida do mundo, Tom e Malu vivem uma montanha russa constante, e Mick e Singe só estão esperando o tiro de misericórdia. Só que, se tô bem com a Kay, não é de graça. Tem de aprender a lidar com ela, a ceder um milhão de vezes e firmar o pé quando necessário. Mas também tem a minha mãe, que, bom, é minha mãe. E com quem eu esqueci de aprender a lidar por muitos anos, até que ela quase foi dessa pra melhor. É uma puta chamada pra realidade quando você acha que vai perder a sua mãe.
E aí, esse ano, eu precisei viajar exatamente no final de semana da porra do bazar e pedi pra Kay ir assim mesmo. Claro que eu sabia que não tava pedindo nada pequeno. Lógico que sabia que ela ia falar na minha orelha um dia inteiro. Mas também sabia que ela iria. A Kay é parceira pra caralho. E aí entra a minha ingenuidade outra vez, porque ela marcou de ir com a Malu e com os gêmeos, todo mundo passaria o final de semana em Manchester, e achei que fosse ser tudo tranquilo.
Até a Kay me ligar bêbada de madrugada xingando a minha mãe de tudo que é nome porque ela falou mal da nossa comida caseira.
-Que comida caseira?
-Tá vendo? Você também não acha que a nossa comida é caseira! Caseira vem de casa! CAS-EIRA! Você sempre concorda com ela!
-Mas eu não sei nem de que porra você tá falando!
-ELA ACHA QUE NÓS NÃO SOMOS CASADOS!
-Mas nós não somos casados!
-PORRA, VINCE, A GENTE TEVE UM CASAMENTO ASTRAL! ISSO É UM CASAMENTO! DOS ASTROS! COM UM AUTÊNTICO GURU INDIANO!
-Kay, toma um comprimido e vai dormir. Quando você chegar a gente conversa.
-FOMOS ABENÇOADOS POR UM GURU QUE VEIO DA ÍNDIA! COMO VOCÊ PODE IGNORAR ISSO E DAR RAZÃO À SUA MÃE?!
-Kate! Depois a gente conversa!
Não dá pra ter DR com uma mulher bêbada por telefone.
E não, não somos casados.
Quando a Kay me deixou, dois anos atrás, ela me passou vários atestados de idiota junto com o pé na bunda. Idiota porque, do nada, ela se revoltou com a nossa vida perfeita por ela ser, justamente, perfeita. Idiota porque eu não entendi que "perfeita" era ironia. Idiota porque a mulher da minha vida estava infeliz há anos e eu fui incapaz de perceber. Idiota porque, quando tive a oportunidade de tê-la de volta, quase a deixei escapar. E aí veio terapia de cem libras a hora (que valeu, foi legal, não teria recolhido meus certificados se não fosse por ela, mas fiz isso nas duas primeiras sessões e não tinha cabimento continuar) e casamento astral, que eu topei porque era importante pra Kay e, naquela época, eu faria tudo. Sabe assim, se ela dissesse que se eu comesse merda ela acreditaria que a nossa vida era perfeita de verdade, eu comeria?
Só que, porra, não somos casados.
E de repente eu me toquei que a gente está perto de cometer o mesmo erro de novo. Eu atropelei a Kay com a história do aborto, foi a única vez na vida que a gente não sentou e conversou. Quer dizer, eu achei que tivesse sentado e conversado, mas ela não entendeu assim e deu na merda que deu. E agora ela está me atropelando com esse casamento astral, que no fundo foi mais uma das porra louquices dela, e tudo bem, foi bonito pra caralho, foi foda, amei falar meus votos pra ela na frente dos nossos amigos, mas não é isso o que eu quero. Quero um pouco de chão, caralho, alguma coisa terrena. Quero um casamento de verdade com certidão assinada e registrada em cartório. Não quero a vida dos meus pais, mas não quero viver solto num nirvana abençoado por buda e regido pelos doze signos do zodíaco, consagrado pela mãe terra e aquela porcariada toda que os pais da Kay enfiaram na cabeça dela. E o que me dá medo nessa história é que talvez eu e Kay não sejamos iguais, afinal de contas. Talvez a gente esteja seguindo caminhos diferentes.
---
Esse POV faz parte da Semana do Vince, que está acontecendo até o dia 05/07 no grupo Realidades Paralelas da Mari
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Lado Escuro da Lua
Roman d'amourEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...