Episódio 06 - Agda: Possessão II: Violação

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Após a refeição, me coloquei em movimento e deixei a minha casa, mesmo com as advertências do meu pai. Apesar de o vento estar gelado, ele não soprava forte; o céu estava limpo e as estrelas brilhavam com intensidade. Geralmente, eu aguardava no beco o momento oportuno para desviar dos guardas que patrulhavam a saída sul do vilarejo, mas por algum motivo nenhum deles parecia estar em seus postos. Se eu estivesse atenta, teria notado também que as ruas estavam mais quietas que de costume. Eu alcancei o interior da floresta em poucos instantes e segui para a copa da minha árvore.

A floresta estava estranhamente silenciosa e eu tentei me desconectar do mundo ao meu redor. Eu não queria pensar em mais nada e até tive sucesso por um momento. Afastei da minha mente o acordo quebrado e as mentiras que eu contava aos meus pais para ocultar minhas fugas. Tive que fazer certo esforço para não pensar na saudade que eu sentia deles também, mas por mais que eu tentasse, não consegui bloquear aquela sensação estranha que pairava no ar, em especial porque ela se intensificou de tal forma que fui tomada por um pavor súbito. Eu me senti ameaçada e não fui a única; as criaturas da floresta irromperam em gritos e se agitaram repentinamente. Elas quebraram o silêncio mórbido para anunciar aos seus semelhantes que o predador rondava por entre as folhas do solo.

Desejei ter cedido ao impulso de não sair de casa naquele ciclo. Decidi retornar para a vila e me apoiei nos galhos para iniciar minha descida, até que a formação de uma tempestade massiva no horizonte me chamou a atenção, mais especificamente na área da fronteira, próxima ao território neutro. Imediatamente, um forte vento começou a soprar daquela direção e fez com que todas as árvores balançassem incessantemente. Tudo o que consegui fazer foi fechar meus punhos com firmeza na tentativa de não me soltar dos galhos que se agitavam intensamente. A tempestade ganhou força e se espalhou pela região. As densas nuvens que tomaram os céus trouxeram águas torrenciais que tornaram as coisas ainda mais difíceis.

Eu não tive escolha, precisei me arriscar em uma descida rumo ao solo e o tronco liso me fez desabar. O impacto no chão alagado da floresta foi tamanho que precisei de um instante para recobrar os sentidos. Minha cabeça pulsava, minhas vistas estavam embaçadas e uma de minhas pernas me causava dor excruciante; algo certamente havia rasgado minha carne. Tentei firmar minhas mãos no chão e senti uma delas afundar em uma poça de lama. Consegui me levantar com muita dificuldade e olhei em volta procurando a saída, mas estava desorientada demais para compreender as novas formas que a floresta havia assumido. Algumas árvores se dobraram perante o vento, outras cederam e tombaram. O chão parecia se mover à medida que a água corria por sua superfície, enquanto o vento e a chuva mudavam de direção constantemente. As copas das árvores não aplacaram a tempestade, e as coisas lá embaixo não estavam melhores do que o cenário que eu havia presenciado do alto — características típicas das tempestades conjuradas pela magia do elementalismo.

Eu não dispunha de condições físicas ou mentais para sair dali. Eu estava vulnerável e lançada à minha própria sorte. Decidi apalpar os arredores para localizar o tronco mais próximo e, quando o encontrei, abracei aquela árvore o mais firme que pude na tentativa de poupar a perna danificada. Com o rosto pressionado contra o tronco, fechei os olhos e desejei uma saída dali com todas as forças que me restavam. Desejei estar na segurança de casa, desejei que alguém viesse ao meu socorro. Antes que eu pudesse desejar qualquer outra coisa, a tempestade cessou com a mesma rapidez com a qual surgiu. Diante da calmaria súbita, abri meus olhos lentamente, e eles tomaram o seu tempo para se adaptarem por completo. Tudo ainda estava meio escuro quando comecei a analisar a situação. Meus pés estavam enterrados na lama, eu tremia pelo frio e pela dor. Meu corpo estava a ponto de ceder quando eu a senti.

A mesma sensação que me acompanhou por todo o ciclo lunar havia voltado. Pela potência das sensações, logo percebi que estava na presença da entidade que causou a alteração nos fluxos de energia. A adrenalina causada por aquele encontro me deu forças para me apoiar sobre a perna ferida e me virar. A lua havia voltado a iluminar precariamente o ambiente, e o cenário com o qual me deparei fazia jus à violência da tempestade. Troncos e galhos se amontoaram aqui e ali, várias árvores não resistiram. Água escorria pelo chão da floresta, carregando folhas e lama para todas as direções, mas o grande destaque era a figura espectral de um lobo me encarando sob a luz do luar. A pelagem branca se desfazia em uma espécie de aura que se diluía no ar. Eu vi que lhe faltava uma das presas absurdamente grandes quando ele se pôs a rosnar. A criatura carregava as estrelas no olhar, ou seriam aqueles pontos resplandecentes as faces de suas vítimas? Eu lamentei como nunca por ter descumprido a minha parte no acordo.

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