A criatura

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   Ela era a criatura mais bela a qual já tive a oportunidade de fitar. Encarando-me com aqueles olhos negros carvão, reluzentes ao luar, penetravam a minha alma, expondo minha mais pura paixão. Era a dona dos corações juvenis.
   Seus cabelos eram enrolados e voluptuosos como nuvens no céu. Afinal ficara a manhã toda com bobs na cabeça para que os malditos enrolassem. Pinicavam mais que tudo. Mas  fazer o que, seu criador  a gostava assim: com um cabelo que não era seu.
Passava batom para avolumar mais ainda os lábios,  a qual eu loucamente adoraria desfrutar, roubar-lhe um beijo. Ela era a deusa a qual eu proclamava em minhas preces. A Afrodite de meus sonhos.
   Porém não a conhecia. E tão pouco ela tinha conhecimento de mim. 
   Encarando-a mais, não pude deixar de notar que ela não era perfeita. Faltava-lhe  mais um pouco de maquiagem. Talvez uma pinta charmosa como Marilyn Monroe. Ou diminuir aquelas horrendas  bochechas. Ah aquelas bochechas gordas... Como gostaria de ter um bisturi para eu mesmo arranca-las, juntamente aquele nariz redondos e avermelhados. Era o que? Uma palhaça?

 
Sua porca horrenda!!! Nojenta!!!

   Como pude compará-la a uma musa grega, eu estava cega. Ela era só mais um anjo caído. Um demônio infeliz e solitário. Uma  criatura degradante. Falha. Muito falha por sinal. Tinha muito a melhorar, retocar e emendar. Mas o que? O que a faltava meu senhor?
   Seu criador não teve dó ao lhe dar vida. Isso tenho certeza. Ser cruel! Como pode fazer esse ser sofredor e horrendo!

   Lágrimas de cristais saiam dos olhos borrados da criatura dê Frankenstein. Quero parar de encara-la (ó se quero). Pois sinto que a feri com meus desejos, meus retalhos. Mas do espelho meus olhos não saem, e aos poucos me torno uma "Narcisa". Despedaçando-me. Pois só sirvo para me ferir, nada mais para me orgulhar. Até finalmente me transfigurar totalmente em uma simples flor. Uma flor que corta a palma da mão da moça que receber esse buquê. Me tornei uma amalgama de problemas, um ser sem dores e com arrependimentos, intrínsecos, ao meu corpo.

   Tochas acesas refletem na caligem de meus olhos no espelho; criatura sem remorso, agora borrada, com medo de ser deixada. Agradando com visagismos, mas ainda precisa de muito remendo para ser amada, pois já perdeu a paixão por mim, pois nem sei mais quem sou. Como amar o nada? Como odiar o nada? Será que sou a cadela moribunda atropelada, deixada em um terraço aos urubus ou a princesa libertadora de almas escravas romantizada pela história? Cadáveres amarrados. Corpos unificados. Partes que não era seu.
Esconde seu corpo! Cubra com uma linda peça! Só assim para não te queimarem minha criatura.
Lembra do seu corpo quando era bebê, ele era perfeito, não é? Pois o meu, essa carcaça maquiada, só me fez machucar!


   Seu monstro!!! Você me enoja!!!

    Vejo além da ignorância da razão de sua physis. Compreendo que ela era linda, maravilhosa, aquela sensação de ardência na mão, o sangue rubro caindo em seu vestido floral, pintando a flor branca como lhe pediram, e seu sorriso de ingenuidade - pérolas no nascimento de Vênus. Meu deus por que soquei o espelho? Era a criatura! A criatura mais bela que eu já pude fitar. Era única. Era divina.

   ELA ESTÁ VIVA!!!

A vaca de porcelanaOnde histórias criam vida. Descubra agora