Estou morto, mas isso não é tão ruim. Aprendi a conviver com isso. Desculpe não me
apresentar da forma correta, mas não tenho mais um nome. Dificilmente algum de nós
tem um. Nós os perdemos como perdemos chaves de carro, os esquecemos como
esquecemos de alguns aniversários. O meu talvez começasse com R, mas isso é tudo que
sei. E engraçado porque quando eu era vivo, sempre me esquecia do nome das outras
pessoas. Meu amigo M diz que a ironia de ser um zumbi é que tudo é engraçado, mas
você não consegue rir, pois seus lábios apodreceram.
Nenhum de nós é atraente, mas a morte foi mais gentil comigo do que com muitosoutros. Ainda estou nos primeiros estágios do apodrecimento. Apenas a pele cinza, o
cheiro ruim e os círculos negros embaixo dos meus olhos. Quase posso me passar por um
homem Vivo precisando de férias. Antes de me tornar um zumbi, devo ter sido um
homem de negócios, um banqueiro, corretor de ações ou um jovem estagiário aprendendo
o negócio, pois estou vestindo roupas boas. Calça preta, camisa cinza e gravata vermelha.
M tira um barato de mim às vezes. Ele aponta para minha gravata e tenta rir, soltando um
ronco gorgolejante e meio engasgado do fundo de suas entranhas. Ele usa uma calça jeans
rasgada e uma camiseta branca, que agora já parece bem macabra. Ele devia ter escolhido
uma cor escura.
Gostamos de fazer piadas e especular a respeito de nossas roupas, afinal, estas
últimas escolhas de estilo são a única indicação de quem fomos antes de nos tornarmos
um zero à esquerda. Algumas são menos óbvias que a minha: um shorts e uma regata
feminina, uma saia e uma blusa. Por isso damos chutes aleatórios.
Você era uma garçonete. Você era estudante. Lembrou de algo?
Nunca dá certo.
Ninguém que eu conheço tem alguma memória específica. Apenas um conhecimento
vago, um vestígio de um mundo que se foi há muito tempo. Fracas impressões de vidas
passadas que duram como membros fantasmas.
Reconhecemos a civilização - prédios, carros, a visão geral da coisa - mas não temos um
papel nela. Nenhuma história. Apenas estamos aqui. Fazemos o que temos que fazer, o
tempo passa e ninguém faz nenhuma pergunta. Mas como falei antes, não é tão ruim.
Pode parecer que não temos cérebro, que não pensamos, mas não é verdade. As
engrenagens enferrujadas da coerência ainda funcionam, só que em uma velocidade cada
vez mais lenta, até que o movimento externo fique praticamente imperceptível. Nós
grunhimos e gememos, damos de ombros e acenamos com a cabeça, e, às vezes, até
uma palavra ou outra saem de nossos lábios. Não é tão diferente de antes.
Mas o que me deixa mesmo triste é esquecermos nossos nomes. Isso me parece ser a
coisa mais trágica de tudo. Sinto falta do meu e lamento pelos outros, porque gostaria de
amar todos, mas não sei quem são eles.
Centenas de nós vivem em um aeroporto abandonado próximo a uma grande cidade.
Não precisamos de abrigo ou aquecimento, isso é óbvio, mas gostamos de ficar em
lugares que tenham paredes e teto. Senão, ficaríamos vagando em um lugar aberto cheio
de poeira, e isso seria estranho e horrível. Não ter nada a nossa volta, nada para tocar ou
olhar, nenhuma construção de nenhum tipo, apenas nós e o grande céu aberto. Imagino que
isso é estar totalmente morto. Um vazio total e absoluto.
Acho que estamos aqui há muito tempo. Ainda tenho toda a minha carne, mas há
outros mais antigos que são quase apenas esqueletos com alguns pedaços de músculos
totalmente secos. De algum jeito eles ainda se contraem, se distendem e continuam se
movendo. Ainda não vi nenhum de nós "morrer" de velhice. Talvez a gente viva para
sempre, não sei. O futuro para mim é um borrão tão grande quanto o passado. Não
consigo me preocupar com nada à direita ou à esquerda do presente, e mesmo ele
também não é uma coisa exatamente urgente para mim. Pode-se dizer que a morte me
deixou relaxado.
Estou na escada rolante de novo quando M me encontra. Brinco nelas várias vezes por
dia, sempre que estão funcionando. Isso se tornou um ritual. O aeroporto está abandonado,
mas às vezes a energia se liga durante um tempo, talvez vinda de algum dos geradores de
emergência que dão seus suspiros lá dos subsolos mais profundos. A luz se acende, astelas piscam e as máquinas voltam a funcionar. Adoro esses momentos, é o sentimento