Escuridão... era tudo que ela conseguia enxergar, enquanto trancada naquele quarto, com sua cortina completamente fechada, para evitar ate mesmo que o Sol de todas as manhãs a iluminasse. Seu telefone tocou algumas vezes, mas parou há algumas horas, a pessoa que a ligava devia ter percebido que não teria sucesso em sua tentativa de contato.
Já era fim da noite e início da madrugada, suas lágrimas já haviam se secado a muito tempo e só o que lhe restou foi ficar ali, encarando o teto, tentando levar seus pensamentos para longe daquilo tudo.
Decidiu ir ate a cozinha uma hora, pegar para si mesma uma xicara de café puro, apesar de não ter conseguido dormir direito após o enterro, era como se quisesse permanecer acordada por mais tempo, junto a seus pensamentos destrutivos.
Passou em frente ao escritório de seu marido, que permanecia trancado. Ele poderia estar sofrendo o luto em seu quarto, mas talvez fosse mais fácil simplesmente se afogar em trabalho, do que ficar pensando em toda a dor que habitava aquela casa.
Toc toc...
Ela ouviu a batida vinda de sua porta.
“Mas quem poderia ser nesse horário?” Ela pensou.
De roupão, sem se preocupar em colocar uma muda de roupa ou qualquer coisa que lhe mudasse a aparência, decidiu caminhar ate a porta e a atender. Era claro o seu desejo de ficar sozinha, porém ficou tanto tempo calada que parte de si achou agradável a ideia de conversar com alguém, mesmo que fosse só para dizer que não queria conversar.
Ao atender a porta, viu lá parada uma moça alta, de cabelo curto e escuro, um vestido longo, preto e elegante, como alguém pronta para ir a um baile de gala. Tinha uma beleza incomparável e um olhar sério e calmo. Por um momento, a mulher se viu encarando a profundidade de seu olhar, através de seus olhos castanhos.
-Mell? – A moça disse, como quem conversava com uma velha conhecida.
-Anne... – Ela disse de maneira calma. – Será que posso entrar?
A inspiração
Mell se sentou sob a mesa da cozinha, enquanto Anne lhe servia uma xícara de café. A casa estava uma bagunça, pois a mesma não esperava visitas e seus olhos, com olheiras profundas, mostravam o quão exausta aquela mulher estava.
-Sua visita de hoje pode se mostrar decepcionante, velha amiga! – Anne dizia, ao se sentar à mesa. – Não tenho conseguido escrever nada a um tempo...
-Considere isso uma visita social! – Mell tomava um gole de seu café. – Como de alguém que só veio ver como as coisas estão!
-Estão péssimas se vier me perguntar! – Anne bebia mais café.
-Eu... soube o que aconteceu!
-Tanta dor e sofrimento no tratamento de minha filha... porém, bem no fundo de meu coração, eu sabia que isso chegaria a acontecer! Me diga, você que anda entre o céu e o inferno, tem algo que eu poderia ter feito?
-Há coisas que não é possível mudar!
-E será que você não poderia me trazer ela de volta?
-Creio que não seja possível, minha amiga... ela foi para muito longe de meu alcance!
-Então significa que ela está em um lugar melhor!
Anne encarou sua xícara de café por um tempo, até o momento em que sua mão começara a tremer. Não demorou ate que a mesma se debulhasse em lágrimas novamente, sem se importar que houvesse alguém a olhando.
-Meu... Deus... – Anne dizia entre lágrimas e soluços. – Será que pequei tanto assim em minha vida? Mereço tanta agonia e sofrimento assim?
Mell a observou por alguns instantes, em silêncio, mantendo seu olhar sério enquanto aguardava a mulher colocar toda sua dor para fora. Aquilo durou um tempo, até decidir se levantar.
-Não sou boa em momentos assim, mas posso te levar até pessoas que sejam!
-O que..?
-Se levante e segure minha mão... chegaremos lá antes que perceba!
-Mas eu não estou arrumada adequadamente!
-As pessoas daquele lugar também não estão!
Anne seguiu sua amiga, sem hesitar ao segurar sua mão. Pareceu questão de segundos entre sair pela porta de sua casa e chegar em um lugar distante, um lugar do qual jurou nunca ver antes.
Parecia uma taberna antiga, ao olhar de fora, em um lugar calmo e inóspito, parecendo estar isolado de qualquer sinal de civilização, apesar de parecer ter luz elétrica vinda de dentro do lugar. Ela olhava ao redor, para tentar ver se ali parecia com qualquer outra região que ela já tivesse visitado, porém não teve sucesso ao reconhecer qualquer uma daquelas montanhas de formato estranho.
Ao olhar para o lado, percebeu um homem enorme, musculoso e com a pele verde, que havia conseguido se aproximar sem que ela visse. No susto, segurou firme no braço da Mell.
-Olá Mell! – O homem dizia de maneira amigável, antes de encarar Anne durante um tempo. – Não acredito que seja prudente trazer um mortal para cá...
-Eu trago aqui quem eu bem entender! – Mell respondeu, fazendo o homem sair dali em silêncio. Aparentemente, ela era respeitada, ao ponto de ninguém a questionar por muito tempo.
-Este lugar... – Anne disse ao se soltar dela, aos poucos. – Não é nada parecido com qualquer coisa que eu já tenha visto, não é?
-Não, não é!
As duas foram andando calmamente ate a entrada.
-Eu não entendo Mell...
-O que?
-Eu sempre me achei uma escritora mediana... publiquei alguns contos mas nunca cheguei realmente a fazer sucesso mundial! Mesmo assim, você me visita de tempos em tempos e me pede uma história!
-Sim?
-Por que?
-Digamos que sou do tipo que colhe os frutos antes de amadurecerem! – Ela respondeu friamente.
Ao entrarem, Anne não viu nada de muito fantástico ou diferente de qualquer outro bar que entrou. Haviam pessoas em suas mesas, bebendo e encarando o nada, como se aquele lugar fosse algum tipo de refugio. Porém continuava a ver tipos diferentes de seres, dos quais nunca vira em sua vida.
-Espere aqui enquanto preparo a mesa! – Mell disse.
-Vai... me deixar sozinha?
-Entenda, aquele que mexer com você irá se ver comigo!
Anne ficou olhando Mell se afastar um pouco, ao mesmo tempo em que percebeu todos a sua volta a encarar, com olhares nem um pouco discretos. Mas só o que podia fazer era esperar.
.
.
Poucos minutos depois Mell retornou, notando que Anne havia se sentando em uma das mesas, conversando com uma moça de olhar tão triste quanto o dela, enquanto bebia quantidades exorbitantes de bebida alcoólica.
-Anne... – Mell chamou sua amiga, que veio ate ela bem rápido, com um semblante de animação.
-Mell, isso foi incrível! Acredita que aquela moça se diz ser a Athenas, da mitologia grega?
-Ainda não está pronta para conversar com aquela mulher... sua mente não aguentaria o que ela tem a lhe dizer.
Então Mell a levou a uma das mesas, bem no fundo do bar. Lá Anne conseguia ver dois homens sentados e bebendo, ambos extremamente pálidos, tal como sua amiga, um deles tendo um olhar bem sério e melancólico, enquanto o outro, mais extrovertido, levantou de sua cadeira para cumprimentar elas:
-Então você deve ser quem a minha dama mencionou! – Ele beijava a mão de Anne em sinal de cumprimento. – É uma grande honra ter uma escritora como você em nosso recinto! Me chamo Benjamin, as suas ordens.
Anne achou engraçado a forma cortês e antiquada com a qual ele se portava.
-Menos cortejo e mais palavras! – Mell o disse, cruzando os braços. – Eu a trouxe para que possa ouvir vocês!
-Nesse caso, tome um assento para ti.
Anne se sentou junto a eles. O outro homem só bebia quieto, sem nem ao menos se apresentar para a moça.
-O que eu vim ouvir? – Ela perguntou, confusa.
-Algo que pode influenciar você futuramente, seja para o bem ou para o mal! -Mell respondeu, a deixando mais confusa ainda.
-Bom então agarre um copo e se mantenha confortável... – Benjamin continuou a falar. – Eu te contarei a história de como consegui minha “segunda vida"!
-Segunda vida?
-Foi a muito tempo atrás... – Benjamin começava a contar sua história, levando sua mente a vários e vários anos no passado:
“Eu era um rapaz, que cresceu como um jovem órfão, junto a meu irmão, em uma pequena vila próxima ao castelo do rei. Como deve imaginar, éramos pobres e miseráveis, pisados pelos cavalos dos homens de vossa majestade, sempre que eles andavam por aquela parte do reino.
É incrível imaginar as vezes em que eu e meu irmão mais velho quase morremos congelados, devido ao terrível frio das noites do vilarejo, quase trincando nossos dentes de tanto os bater, tendo nada mais que um pedaço de papelão para nos cobrir, isso se tivéssemos sorte.
Um dia, quando estivermos a sós, eu lhe conto das vezes que tínhamos que sobreviver aos bêbados que saíam das tabernas a noite, que viam nada mais do que duas crianças sujas, para lhes servirem de saco de pancadas. Mas não quero me alongar muito.
Uma coisa que levamos poucos anos para descobrir, sem contar aos demais da vila, era que nosso sangue era abençoado! Nosso pai era um grande mago, que tinha o dom da ilusão, já vinda de muitos e muitos anos em sua linhagem. Algo que seria passado para nós quando chegássemos na adolescência, porém uma infelicidade do destino o levou deste mundo, antes que ele pudesse nos passar suas lições.
Porém ele tinha deixado um livro para trás, este que nós usamos para nos guiar, enquanto tentávamos sobreviver naquele inferno. Ate que, inevitavelmente, começamos a dar um outro tipo de uso aos nossos poderes...
Me diga: o que dois garotos, abandonados a própria sorte pelo mundo, fazem quando descobrem ter poderes mágicos?”
-Não imagino nenhuma jornada heroica vindo disso! – Anne respondeu.
“Ah... eu sabia que gostaria dela!
Bom, basicamente nos tornamos aquele pequeno ponto que uma sociedade em declínio ignora arduamente... Não demoramos muito para usar alucinações a nosso favor para cometer pequenos furtos, para sobreviver é claro!”
-Que tipos de ilusões eram essas?
“Das mais diversas minha cara...
Conseguíamos criar imagens tão reais quanto eu, você ou este bar, sendo tão vividas a ponto de enganar o próprio Deus se fosse necessário! As vezes poderíamos criar algo simples, como trazer para a pessoa a sensação de estar em um terremoto, vendo o mundo desmoronar ao seu redor, para até a imagem perfeita de um exercito inteiro vindo te buscar. As vezes criamos imagens de monstros enormes, só por diversão mesmo!
Com o tempo, mudando de cidade em cidade, nossos golpes cresceram, junto a nossa fama pelos locais onde passávamos. Conseguimos até mesmo juntar um bando, que nos seguiria até no inferno se fosse preciso... homens tão leais, o que era bem difícil de arrumar naquele tempo.
Foi uma época de fartura, onde roubávamos carruagens de nobres desavisados, na estrada leste, usando o dinheiro logo de noite, nos melhores cabarés da cidade, afinal, homens tem necessidades!
Aos 23 anos de idade, parecia que eu tinha o mundo nas mãos. Porém é o que dizem: a ganância que te sustenta é a mesma que te mata!
Já faziam alguns meses que o exército do rei nos investigava, sem nosso conhecimento prévio de que estariam em nosso encalço. Liderados pelo general Keinsk, conhecido por seus métodos brutais de derrubar aqueles que se opuseram ao seu senhor.
Foi assim que ele e seus homens encontraram nosso esconderijo, começando a atear fogo na pequena cabana de madeira em que nos amontoávamos.
“Temos que sair!” Eu gritei para meu irmão.
“Ganharei tempo!” Ele respondeu, ordenando que eu fosse na frente.
Eu galopava em nosso cavalo já alguns metros, percebendo que ele e seu cavalo logo me alcançaram. Então corremos e corremos e corremos.... ate não ser possível mais escutar os homens do rei, ou enxergar a enorme fumaça daquele incêndio horrível.
Eu olhei para o lado, confiante, porém com meu sorriso logo se apagando...
Percebi que meu irmão, que me seguiu por todo aquele caminho, parecendo estar intacto da batalha, desaparecia aos poucos com a brisa dos ventos...”
-Oh não!
“Você percebe? Meu irmão usou nosso dom contra mim, para que eu o enxergasse correndo ao meu lado e que não me sentisse tentado a voltar para tentar o salvar. E eu sabia que só havia um único motivo para sua ilusão ter se desfeito.
Foi ali que caí no chão, exausto e derrotado, com a dor do luto tomando todo meu corpo!
....”
-O que você fez depois disso?
“Me agarrei na única coisa que me sobrou: vingança!
Claro que seria tolice enfrentar o general do rei diretamente, por isso armei um plano elaborado de vingança, um que levou três anos, para que eu conseguisse treinar tanto meus poderes quanto minha habilidade com a espada.
Conseguindo alguns contatos e informações, eu descobri que Keinsk havia parado em uma taberna, junto de seus homens, aonde conseguiu toda a bebida de graça que pudesse beber, em nome do rei e de sua missão.
Era onde EU deveria atacar!”
-E como foi? Sua vingança? – Anne estava cada vez mais empolgada com a história, coisa que era perceptível para a Mell.
“Eu não a concretizei...”
-Como?
“Ao chegar lá, tudo que eu encontrei foram homens mortos, em um amontoado de corpos empilhados, tendo seu sangue adicionado as paredes e ao chão da taberna, como se fosse uma nova pintura bizarra. Keinsk também estava entre os mortos.
Bem lá no centro, em pé no meio daquele massacre, foi quando conheci as duas que estavam em pé, encharcadas com o sangue daqueles homens.
-Mais um deles? - Mell dizia, com uma expressão de nojo.
Ela tinha cabelos longos e escuros, junto a um vestido preto e longo, com um colar de pérolas enrolado em seu pescoço, estes que estavam avermelhados. Era bela, assim como é agora.
-Irmã... nenhum soldado iria tentar se impor para nós, após ver essa cena!
Lutyah era a irmã dela, tendo um enorme sorriso em seu rosto, diferente de sua irmã. Tinha longos cabelos cor de sangue, mesma cor aquela que tinha seu vestido, que era bem mais decotado que o de Mell, não ficando atrás da mesma em questão de beleza. Ela lambia um de seus dedos, para limpar a sujeira que o sangue daqueles homens deixou sobre ela.
Era como se eu estivesse na presença de duas deusas, que me olhavam com insignificância, através de seus olhos vermelhos e brilhantes.
-O que... aconteceu aqui?- Perguntei assustado.
Lutyah logo respondeu, com um enorme sorriso e um jeito simpático, como de uma pessoa que não massacrou um mini exercito:
-Existem homens que se atrevem a testar nossa paciência... bom, é isso que acontece quando passam dos limites!
-Eram... homens do rei... – Eu disse, ainda incrédulo.
-Parecem só montes de carne e ossos para nós!
Então me ajoelhei naquele chão sujo, sentindo as lágrimas encherem meus olhos. Um sentimento de profunda tristeza e decepção passou por mim.
-Me matem!
Como? - Lutyah me olhou com surpresa, enquanto Mell demonstrava uma curiosidade discreta também.
-Tudo que fiz nos últimos anos, foi me preparar para matar este homem! Minha vingança era tudo o que me sobrou nesta terra e agora... isso foi tirado de mim! Não desejo mais permanecer vivo sabendo que falhei com meu irmão!
Percebi Mell se aproximando de mim, começando a falar enquanto me olhava de cima, com seus braços cruzados:
-Alguém que estava vivo sob o pretexto de vingança? Parece muito com alguém que já perdeu sua alma a muito tempo...
-Perdi bem mais do que isso Milady...
Não sei dizer o que se passou na cabeça daquela bela mulher, quando ela me deu a seguinte proposta:
-Posso te matar, se assim desejar. Para mim será como um simples passeio no parque e me deitarei normalmente em minha cama, sem ao menos lembrar de seu rosto! Mas caso queira uma forma de lidar melhor com emoções tão patéticas, posso lhe oferecer algo mais...
-Algo mais?
-Uma segunda vida, uma na qual você ainda não cometeu nenhum erro. Nesta você seria lavado de todos seus pecados e renasceria como um servo, devendo obediência unicamente a mim!
Lutyah se aproximou, surpresa.
-Irmã? Eu aqui pensando ser a única que gostasse de adotar animais feridos!
-É bom variar a rotina de vez em quando, assim podemos ver o que esse mundo tem a oferecer! – Mell a respondeu.
Era incrível as ouvir falar daquele jeito.
-Então? Qual sua resposta? - Ela me encarava de forma imperativa, tendo uma certa urgência em seu olhar, enquanto, ao mesmo tempo, emanava uma seriedade estranha.
Foi a partir daquele dia que me transformei no que sou hoje, servindo minha amada de todas as formas que consigo!”
-Você é um vampiro? – Anne parecia espantada ao fazer essa pergunta.
-Claro que sim milady! – Benjamin respondeu. – Todos dessa mesa são!
-Ate você Mell?
-Sou um pouco mais do que isso! – Ela respondeu.
Anne sentia um pouco de medo naquela hora, mas claro que sua curiosidade era bem maior.
-Tudo isso é incrível mas o senhor ainda não me disse o que fez para acalmar seu luto...
-Meu luto? – Benjamin parecia um pouco mais serio depois daquela pergunta. – Creio que meu luto nunca tenha sumido de fato! As vezes ainda me pego pensando na eternidade e, em como tantos anos vivos pode ter me afetado mentalmente...
-Não se sente mal por seus entes queridos?
-Sim, mas aprendi a lidar com isso.... bom, como eu posso explicar? – Ele ficou um tempo pensando em sua próxima resposta. – Pensa em sua escrita e em como criar estas histórias te ajuda a passar pelas animosidades da vida. Consegue ver?
-Na verdade sim...
-É isso que a Mell tem sido para mim por todos esses anos! Ser algo mais do que eu era na “outra vida" me motiva a continuar, mesmo que isso signifique, talvez, a eternidade sem ver meu irmão de novo!
-Não consigo acreditar que tenha ficado tão mole assim com o passar dos anos! – Mell disse, de maneira severa, se sentando em uma das cadeiras que estava vaga.
-Ah qual é... dá um descanso aí! – Ele sorria, levantando seu copo para o alto. – Um brinde a outro dia na segunda vida!
Anne sorriu, fazendo o brinde com ele.
De repente todos escutam uma batida na mesa. Eles olham para o rapaz sério, que acabou de bater na mesa, com raiva.
-Achas que já consegue pensar na eternidade? – Ele falou, de forma fria.
-Pensei que você nunca fosse começar a falar! – Mell disse para ele.
-Vocês pareciam muito entusiasmados para jogar conversa fora!
Anne ficou um pouco assustada com ele.
-Você sequer a cumprimentou, mesmo sabendo que é minha convidada! – Mell tinha um olhar bem ameaçador enquanto falava aquilo. – Não pense que deixarei isso passar em branco...
-Vamos ficar calmos! – Benjamin tentava apaziguar as coisas. – Ele só está em um dia ruim, oh minha dama da noite!
O homem sério olhava para Anne, como quem estivesse pronto para começar um longo monólogo.
-Mas é verdade UMA coisa: eu também tenho uma história para te contar! Só não espere uma bobagem sentimental e otimista, como foi com esse idiota aí!
-... por mim tudo bem...
-Tudo começou na antiguidade....
“Já faz aproximadamente dois mil anos desde minha vida anterior. Quando criança, eu morava em uma cidade no meio de um deserto, numa região árida e inóspita, aonde não havia um dia que não fizesse um calor escaldante e uma noite que não fizesse um frio horrível.
Eu ajudava meu pai a trazer os poucos frutos que as colheitas costumavam trazer, e sempre tendo que o ouvir dizer:
-O pouco fruto é melhor do que nenhum, devemos agradecer a Deus todos os dias pela chance de nossa refeição!
Tal como alguém que vivia de forma precária, eu tive muita sorte de chegar até a vida adulta. Talvez se não tivesse chegado, eu não teria feito aquilo naquele dia!”
-Que dia exatamente? – Anne o perguntou.
“Bom, eu falo do dia em que fui a principal ferramenta para a morte do seu precioso Messias!”
-Espera... dois mil anos... Você é o...
“Já lhe devo avisar que muita coisa naquele livro velho foi distorcida por vocês humanos, mas, no contexto geral, grande parte daquilo aconteceu mesmo.
Porém, a história de seu interesse é, muito provavelmente, o dia de minha transformação...
No fim daquela execução, fui até uma árvore, para bem longe da cidade, onde armei uma corda para me enforcar. Achei que, pelo menos na morte, eu poderia pagar pela atrocidade que fiz.
Então logo tratei de me enforcar...
Passaram se minutos, horas... e eu estava lá, pendurado pelo pescoço, quase sem conseguir me mexer, nos meus últimos suspiros, sentindo enfim o doce abraço da morte. Mas, sem qualquer explicação, algo me trouxe de volta...
Senti minha corda se arrebentar, me derrubando com força no chão, como se uma força maior não quisesse minha morte! Então, de repente, comecei a sentir o calor do Sol, não como sentia de costume, mas de uma forma diferente...
Era como se ateassem fogo no meu corpo e como se minha pele derretesse aos poucos, ate me fazendo questionar se não eram as chamas do inferno que eu sentia. Porém ainda estava na terra, “vivo" de uma forma estranha, mesmo que não estivesse mais respirando, ou com meu coração batendo.
Fiquei lá, agonizando, sem conseguir me mexer ate que a noite chegasse. Ate lá, não sobrou muito de meu corpo para que eu ainda fosse reconhecível.
Ao cair da noite, consegui abrir meus olhos novamente, estes que já haviam derretido durante a tarde, estavam quase totalmente recuperados. Foi quando me vi cercado, por muitos e muitos corvos negros, que tinham olhos vermelhos e brilhantes, voando em círculos ao meu redor. Eu já havia aceitado me tornar comida deles...
Logo, percebi que eles abriam passagem para a estranha figura que se aproximava de mim, uma mulher, quase totalmente escondida pela sombra, me permitindo enxergar somente seus olhos vermelhos e suas enormes presas, enquanto falava comigo:
-Creio que sua tentativa de morrer não tenha dado certo!
Foi a primeira vez que tive contato com a Mell e, para mim, ela parecia só um simples demônio.
-Aqui é o inferno?
-Ainda está vivo, mas não posso dizer que não está em seu próprio inferno!
-Deus... ele me deu esta maldição pelo que fiz? Você é o demônio que veio me atormentar?
-Não sou um mero peão em um jogo divino! Não me insulte! Porém, você é o próprio responsável por sua maldição!
-Co... como eu poderia ser responsável por tal destino?
-Humanos conseguem se amaldiçoar com mais frequência do que você imagina! A culpa e raiva o trouxeram a uma forma antiga de sua espécie, um estado de não morte irreversível!
-... talvez seja isso que eu mereça mesmo...
Ela me encarou por um tempo, talvez se sentindo minimamente comovida com meu desespero, talvez simplesmente achando patética aquela minha lamentação pessoal. Tudo o que sei é que ela me ofereceu uma proposta única.
-Você andará ao meu lado, terá total lealdade unicamente a mim e aprenderá a lidar com sua segunda vida, tendo minhas instruções para se apoiar!
-Vai... vai me ajudar?
-Não confunda isso com piedade...
-Então o que..?
-Ora eu sou a filha de Lucifer! Nada é mais apropriado do que eu ser a pessoa que irá cuidar do seu castigo eterno!
Foi ali que minha segunda vida começou!”
-Minha nossa! – Anne estava em choque, enquanto, ao mesmo tempo, parecia estar entretida com a conversa.
-Essa é minha história! – O homem finalizava sua bebida.
Anne encarou o nada, um tanto pensativa.
-Algum problema? – Mell perguntou.
-Mell... por que você quis que eu escutasse essas histórias?
-Como?
-Você não é disso... é como... se você quisesse que eu aprendesse como as coisas funcionam ao seu lado, antes de... me transformar!
Mell deu um leve e discreto sorriso de canto de boca, este que levou poucos segundos para sumir novamente.
-Lhe mostrar uma segunda vida seria uma alternativa para toda a dor que você passou! Poderia começar de novo, sem erros para se arrepender, enquanto EU teria acesso ilimitado a suas histórias!
-Escuta ela! – Benjamin dizia, sorridente. – Só vou ficar com um pouco de inveja por você receber mais atenção do que eu...
Anne então olhou para os dois novamente.
-Eu tenho alguma escolha ainda?
-A escolha é TODA sua! – Mell respondeu, colocando a mão no ombro dela. – Caso recuse, te levarei para sua casa novamente, aonde viverá uma vida normal!
-É uma honra que tenha me oferecido isso minha amiga, mas não sinto que isso seja uma dádiva a ser desejada! – Anne se levantou da mesa. – Vai ficar chateada caso eu recuse?
-Eu nunca fico chateada!
As duas se preparavam para ir embora, quando Anne se virou novamente ao homem triste:
-Não sei se me permito acreditar na sua história, porém eu espero mesmo que se perdoe um dia e que consiga superar a perda de seu amigo!
O homem deu um sorriso tímido, quando voltou a beber.
Como em um passe de mágica, Mell levou Anne de volta a seu quarto, antes que o relógio marcasse 1 da manhã.
-Chegamos a essa parte... – Anne disse. – Eu acordo acreditando que isso tudo foi um sonho louco, até o dia em que você resolverá aparecer de novo!
Mell hesitou um pouco na hora de dar a resposta para a moça.
-É isso mesmo!
Anne foi se deitando na cama, quando quis questionar Mell uma ultima vez.
-Apesar de ainda não saber o que você é Mell, eu acho que já entendi seu gosto por histórias!
-Entendeu?
-Conclusões...
-Explique.
-Não importa se o livro é triste ou feliz, geralmente a agonia do protagonista termina na última página! Mas a sua história... ela é eterna! Você gosta de acompanhar as conclusões nos livros, porque sua agonia não termina, certo?
-... você me pegou!
-Boa noite Mell!
-Boa noite, velha amiga!
Então Anne caiu em seu mais profundo sono, sentindo uma brisa forte em seu rosto antes de perder completamente a consciência.
.
.
Anne acordou no dia seguinte, se levantando rapidamente da cama, como se estivesse assustada.
-O que..?
Ela olhava de um lado para outro, soltando uma leve risada ao perceber que era tudo um sonho.
-Claro que era um sonho... – Ela esfregou seus olhos, decepcionada. – Até parece que eu entrevistei um vampiro de verdade...
Ela parou por um tempo, como se tivesse sido atingida por uma incrível ideia.
Seu marido a viu, poucas horas depois, sentada em frente a uma maquina de escrever, digitando como se não houvesse amanhã.
-Querida? Está escrevendo?
-Sim. – Ela respondeu, sorrindo. – Creio que eu não posso simplesmente deixar esse sonho escapar!
“Anne Rice escreveu Entrevista com o Vampiro, finalizando este livro em apenas uma semana, após o falecimento de sua filha devido a Leucemia.”
“Seus livros se tornaram um sucesso mundial, recebendo adaptações no teatro e no cinema.”
“Após a morte de seu marido, em 2005, ela decidiu parar de escrever sobre vampiros, bruxas e outros seres fantásticos, se dedicando a outros tipos de gêneros literários.”
“Em seu livro Christ The Lord: Out of Egypt, ela retrata a história de um Jesus, com sete anos de idade, em sua jornada para retornar para casa, junto a sua família, o retratando de uma forma mais humanizada.”
“Anne morreu em dezembro de 2021, devido a complicações após um derrame cerebral.”
“Em seu enterro, muitos afirmaram terem visto uma moça desconhecida, de cabelos escuros e com um semblantes triste, que não puxava assunto com qualquer pessoa ali presente. Porém a mesma sumiu em questão de segundos, como se fosse um delírio coletivo.”
“Antes do enterro, Mell nunca mais viu Anne Rice após aquela noite, apesar de não ter perdido a estreia do filme de seu livro. A escritora pensou a reconhecer quando a viu de longe, mas esta foi uma sensação breve que logo passou.”
Fim