.capítulo único

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Era costumeiro assistir à chuva ardente caindo do céu das Ilhas Escaldadas por trás da janela do quarto, assim como ouvir a gritaria e bagunça de King e Eda no andar de baixo da Casa Coruja (Luz tinha certeza de que o barulho de vidro quebrado que ouviu tinha sido causado por King!).

Em suas mãos levemente suadas pelo nervosismo estava o celular com a tela acesa, aberta na aba de conversas com sua mãe. A última mensagem enviada por ela fora uma foto na lanchonete favorita das duas. Luz respirou profundamente, deixando o aparelho de lado e afundando o rosto nas palmas.

Soltou um grunhido e bateu as pernas no chão.

— Luz, você ‘tá bem? — a pergunta veio da criatura pequena na porta do quarto. King estava ofegante, sinal de que correra escada acima para, provavelmente, fugir de Eda.

Luz choramingou, levantando-se e apertando King em um abraço. Ele gritou ao sentir a menina enfiar o rosto em sua barriga macia, como se fosse um travesseiro.

— Não ‘tô nada bem, King… — os olhos de Luz estavam chorosos.

— Por quê? O que aconteceu? — King colocou as patinhas nas bochechas de Luz. — Foram aqueles adolescentes de novo? Eu posso dar um jeito neles! Eles não são páreos para o rei dos demônios! — ele ergueu os braços para fingir grandeza, mas aquilo só o deixou mais adorável.

— Antes fossem eles… — a humana sussurrou, sentando no colchão e apoiando King em seu colo. Ela olhou nos olhos dele. — Hoje é um dia especial no mundo humano… — Luz explicou.

— É aniversário de alguém?

— Não exatamente. — Luz riu. — Hoje é comemorado o dia das mães.

— O dia das mães? — os olhos de King brilharam. — Puxa! Eu não sabia que existia um dia assim. O que os humanos fazem nesse dia?

— Cada pessoa comemora do seu jeito, mas eu costumava acordar bem cedinho e preparar um belo café da manhã para a minha mãe. — Luz disse. Ela olhou pela janela. A chuva ardente ainda caia, e era possível ver algumas criaturas correndo à procura de abrigo. — Depois, eu entregava um presente para ela, na maior parte das vezes era uma carta… Não era uma coisa muito grande, mas minha mama sempre agradecia com um sorriso enorme… — os olhos de Luz pareciam desfocados, King percebeu, como se os pensamentos dela estivessem bem longe dali. — E terminava dizendo que eu era o presente dela. — Luz deu risada e suspirou. No fim de seu monólogo, o sorriso sumiu. — Esse ano, isso não vai acontecer.

King tocou a bochecha esquerda de Luz, acariciando-a devagar. Seus olhos estavam tristes, não gostava de ver sua humana tão cabisbaixa. Aquilo definitivamente não combinava com ela.

Luz agarrou o celular que estava jogado no chão e ligou, abrindo a galeria em uma foto específica. Nela, a pequena Luz Noceda de dez anos estava completamente suja de glacê, com o cabelo preso em quatro tranças desiguais, enfeitadas com vários adereços coloridos; ao seu lado, abraçando-a, estava uma mulher mais velha, com os olhos levemente fundos de aparente cansaço, mas um grande sorriso desenhado nos lábios enquanto olhava para a menina.

— Essa aqui é a minha mama. — Luz disse, colocando a tela do celular no campo de visão de King. — Nesse dia nós estávamos comemorando o meu aniversário. Nós não tínhamos mais o meu papa, mas ela não quis deixar passar em branco… Ela nunca deixava nada passar em branco, mesmo quando estava triste… — ela parou por um momento e King aguardou pacientemente. — Eu sinto que… Ela já fez muitos sacrifícios por mim e eu sequer retribui. Que ótima filha eu sou…

Luz suspirou, deixando o celular de lado e jogando-se na cama com King. Ele aconchegou-se em cima da barriga de sua humana.

— Eu não sou muito bom com essa coisa de família, sabe, eu nem conheço a minha — King falou. — Mas tenho certeza de que sua mãe não via o que fazia por você como um sacrifício. Ela te ama, não é? — ele olhou para Luz com os olhos lacrimejando. — E se você não parar de se sentir assim, eu vou acabar chorando, sabia?

Uma risada alta escapou da boca de Luz, que apertou King em um abraço outra vez, fazendo-o resmungar e se debater.

— Você é a coisinha mais fofa do mundo! — Luz falou, imitando uma voz de bebê.

— Pare com isso, eu não sou! — King gritou e a humana parou de rir, diminuindo o aperto. No mesmo instante, a porta do quarto foi aberta com força, revelando a mulher coruja com os cabelos completamente bagunçados e espichados para todos os lados.

— Caramba, Eda! O que te deixou assim?

— Essa coisa pequena me deixou assim! — ela apontou para King, que sobressaltou-se e correu para fora do cômodo, sendo perseguido pela bruxa.

Os gritos e a bagunça retornaram aos ouvidos de Luz, que ergueu-se da cama e voltou a olhar pela janela. A chuva havia parado de cair. Ela apoiou os braços no batente e olhou para o céu; entrelaçou os próprios dedos e fechou os olhos.

Feliz día de la madre, mama. Te extraño. Volveré contigo algún día. Eu prometo.

DÍA DE LA MADRE ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora