Capítulo 10

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Até aqui, recordei em detalhes os eventos da minha insignificante
existência. Dediquei quase todos os capítulos aos dez primeiros anos da
minha vida. Mas esta não pretende ser uma autobiografia comum. Só me
permiti invocar a memória quando sei que as suas respostas possuíam
algum grau de interesse. Portanto, vou avançar oito anos sem muito a
dizer. Apenas algumas linhas são necessárias para manter a sequência da
história.
Quando a febre tifóide completou sua missão de devastar
Lowood, gradualmente desapareceu. No entanto, a virulência do surto e o
número de vítimas já haviam despertado a atenção pública sobre a escola.
Fez-se um inquérito sobre a origem do flagelo, e pouco a pouco se
tornaram públicos vários fatos que despertaram um clamor de indignação
geral. A natureza insalubre do local, a quantidade e qualidade da comida
das crianças, a água salobra e fétida utilizada na preparação da comida, as
roupas e acomodações deploráveis – tudo isso foi descoberto. E a
descoberta produziu um resultado mortificante para Mr. Brocklehurst, mas
benéfico para a instituição.
Muitas pessoas ricas e benevolentes da região fizeram generosas
contribuições para a construção de um prédio mais conveniente e melhor
localizado. Foram criados novos regulamentos. Promoveu-se a melhoria
da alimentação e do vestuário. Os fundos da escola foram confiados à
administração de um comitê. Mr. Brocklehurst, que não poderia ser
ignorado devido à sua riqueza e conexões familiares, permaneceu no posto
de tesoureiro, mas passou a ser ajudado nessa tarefa por cavalheiros de
mente mais aberta e compassiva. Seu cargo de administrador também era
compartilhado por aqueles que sabiam como combinar bom senso com
rigor, conforto com economia, compaixão com honradez. A escola, assim
aprimorada, tornou-se em breve uma instituição verdadeiramente útil e
nobre. Depois dessa reforma permaneci como interna dentro dos seus muros por oito anos: seis como aluna e dois como professora. E, em ambas
as condições, dou meu testemunho do valor e importância da instituição.
Durante esses seis anos minha vida foi a mesma, mas não era
infeliz, porque não era inativa. Tinha ao meu alcance os meios para obter
uma excelente educação. Os meus maiores incentivos eram o gosto pelo
estudo de algumas disciplinas e o desejo de distinguir-me em todas, além
do grande prazer de agradar às minhas professoras, especialmente aquelas
que eu mais gostava. Servi-me amplamente das vantagens que me foram
oferecidas. Tornei-me a primeira aluna da classe mais adiantada, então fui
investida no cargo de professora, que desempenhei com zelo durante dois
anos. Ao fim desse tempo, no entanto, eu mudei.
Miss Temple, apesar de todas as mudanças, continuou como
superintendente do internato. Devo aos seus ensinamentos a maior parte
do que sei. Sua amizade e companhia foram meu contínuo consolo. Ela
esteve ao meu lado no lugar de mãe, mestra e, nos últimos tempos,
companheira. Nessa época ela se casou e foi morar com o marido (um
pastor, homem excelente, quase merecedor de uma esposa como ela) num
condado distante. E assim perdi sua companhia.
Desde o dia em que ela partiu não fui mais a mesma. Com ela
partiam todos os sentimentos estáveis, a ligação que, de alguma forma,
tinha feito de Lowood o meu lar. Eu havia absorvido um pouco da sua
natureza e muitos dos seus hábitos. Meus pensamentos eram mais
harmoniosos. Sentimentos mais controlados tornaram-se meus
companheiros. Fizera um pacto com a ordem e o dever. Vivia tranquila e
creio que até contente. Aos olhos dos outros, e até mesmo aos meus, eu
parecia um caráter disciplinado e dócil.
Mas o destino, na forma do Reverendo Mr. Nasmyth, interpôs-se
entre mim e Miss Temple. Eu a vi, no seu vestido de viagem, subir na
diligência, logo após a cerimônia de casamento. Observei enquanto a
diligência subia a montanha e desaparecia de vista. Voltei ao meu quarto, e
ali passei solitária quase todo o resto daquele meio feriado, concedido em
honra ao acontecimento.
Passei a maior parte do tempo caminhando pelo quarto.
Lamentava minha perda e pensava em como repará-la. Mas quando concluí minhas reflexões, ao olhar para fora e ver que a tarde se fora e a
noite avançava, outra descoberta surgiu na minha mente. Senti como se
nesse intervalo eu houvesse passado por um processo de transformação,
em que minha mente pusera de lado tudo que eu havia tomado emprestado
de Miss Temple. Ou antes, como se ela tivesse levado consigo a serena
atmosfera que eu respirara junto dela – e me deixado entregue ao meu
elemento natural, começando a sentir a agulhada de antigas emoções. Não
era como se eu perdesse um apoio, mas a motivação. Não era a capacidade
de ser calma que me abandonara, só não havia mais razão para estar
tranquila. Durante alguns anos o meu mundo fora Lowood, toda minha
experiência de vida consistia nas suas regras e sistemas. Agora eu me dava
conta que o mundo real era vasto, e que uma gama variada de esperanças e
temores, de sensações e vibrações, esperava por aqueles que tivessem
coragem de seguir em frente e de buscar entre os seus perigos o verdadeiro
conhecimento da vida.
Fui até a janela, abri-a e olhei para fora. Lá estavam as duas alas
do prédio, lá estava o jardim, lá estavam os limites de Lowood, lá estava o
horizonte de colinas. Meus olhos deixaram todo o resto para se fixar
naqueles remotos picos azuis no horizonte, que eu ansiava transpor. Tudo
dentro dos seus limites de rocha e urzes parecia-me o terreno de uma
prisão, os limites do exílio. Acompanhei o traçado do caminho branco que
serpenteava ao pé de uma montanha, e desaparecia numa garganta
encravada entre as outras. Como desejava segui-lo até mais longe!
Lembrei-me do dia que passara por ali de carruagem, descendo a
montanha ao crepúsculo. Parecia ter se passado um século desde que eu
chegara a Lowood, de onde nunca mais saíra. Passara todas as minhas
férias na escola. Mrs. Reed nunca me chamara a Gateshead, e nem ela nem
ninguém da sua família jamais me visitaram. Eu não tinha comunicação
alguma com o mundo exterior, nem por cartas ou mensagens.
Regulamentos escolares, hábitos e noções escolares, deveres escolares, e
vozes, e rostos, e frases, e costumes, e preferências, e antipatias... Isso era
tudo que eu conhecia da vida. E agora sentia que não era o bastante.
Cansei-me da rotina de oito anos em apenas uma tarde. Desejei a
liberdade, ansiei por liberdade, disse uma prece pela liberdade. Tive a
sensação que ela se desfazia ao vento que soprava fracamente. Abandonei-a e fiz uma humilde súplica: pedi por mudança, por estímulo. Este pedido,
também, pareceu dissolver-se no espaço indistinto.
– Então – exclamei, meio desesperada – conceda-me pelo menos
alguma outra servidão!
Nesse momento tocou o sino para a ceia, chamando-me ao andar
de baixo.
Não tive liberdade para retomar a cadeia interrompida dos meus
pensamentos até a hora de dormir. Mesmo então uma professora, que
dividia o quarto comigo, manteve-me longe do tema com uma prolongada
conversa sobre trivialidades. Como eu desejava que o sono a silenciasse!
Tinha a impressão que, se eu pudesse retornar à ideia que me ocorrera
quando estava na janela, alguma coisa útil e inventiva surgiria para o meu
alívio.
Por fim, Miss Gryce começou a ressonar. Era uma galesa
pesadona, mas até agora seus esforços nasais sempre haviam sido
encarados por mim apenas como um transtorno. Nessa noite, porém,
saudei aqueles primeiros sons com satisfação. Estava livre de
interrupções. Meus pensamentos meio apagados retornaram
imediatamente.
“Uma nova servidão! Há alguma coisa aí.” disse a mim mesma
(mentalmente, bem entendido, não falava em voz alta). “Sei que há,
porque não soa doce demais; não é como as palavras Liberdade, Vibração,
Alegria, que são verdadeiramente deliciosas, mas são apenas palavras para
mim. E tão vazias e transitórias que é pura perda de tempo ouvi-las. Mas,
Servidão! Essa era real. Qualquer um pode servir: eu servi aqui por oito
anos. Tudo o que desejo agora é servir em outro lugar. Será que posso
desejar tanto? Será viável? Sim... sim... O objetivo não é tão difícil; se ao
menos eu tivesse um cérebro ativo o suficiente para achar os meios de
conseguir isso.”
Sentei-me na cama de modo a ativar o referido cérebro. Era uma
noite fria. Cobri os ombros com um xale e então novamente me pus a
pensar com todas as minhas forças. “O que eu quero? Um lugar diferente, uma nova casa, cercar-me
de novos rostos, sob novas circunstâncias. Desejo isso porque é inútil
desejar coisa melhor. Como as pessoas fazem para conseguir outro lugar?
Apelam para os amigos, suponho, mas eu não tenho amigos. Há muita
gente que não tem amigos, e que deve cuidar e ajudar a si própria. Quais
são os seus recursos?”
Não sabia dizer. Nada me respondia. Ordenei ao meu cérebro que
achasse uma resposta, e logo. Ele trabalhou, e trabalhou mais rápido. Senti
a pulsação na minha cabeça e nas têmporas. Por quase uma hora, minha
mente trabalhou no caos, mas os esforços não deram resultado. Febril com
o trabalho perdido, levantei-me e dei uma volta no quarto. Entreabri a
cortina, observei uma ou outra estrela, tremi de frio e voltei para a cama.
Uma fada bondosa, na minha ausência, certamente deixou a
solução no meu travesseiro. Pois, quando me deitei, ela me veio à mente,
rápida e facilmente. “Os que desejam uma colocação anunciam no jornal.
Você deve pôr um anúncio no Herald.”
“Mas como? Não sei nada de anúncios.”
As respostas vinham suave e prontamente.
“Deve colocar o anúncio e o dinheiro para pagá-lo num envelope
dirigido ao editor do Herald. Deve levá-lo, então, na primeira
oportunidade que tiver, ao correio de Lowton. As respostas devem ser
endereçadas a J.E. para a posta restante de lá. Deve ir perguntar por elas
uma semana depois que mandar a carta. Se houver alguma, é só agir de
acordo.”
Revi o esquema, uma, duas, três vezes, até que ficasse gravado
em minha mente. Fixei-o de forma clara e prática e fiquei satisfeita. Então
caí no sono.
Levantei-me bem cedinho. Antes que tocasse o sino para o
despertar, já tinha o anúncio escrito, envelopado e endereçado. Era assim:
“Jovem dama acostumada a lecionar (eu não havia sido
professora por dois anos?) deseja encontrar colocação em casa de família
com crianças abaixo de quatorze anos (pensei que, como mal tinha feito
dezoito anos, não seria possível educar crianças quase da minha idade). Está qualificada a ensinar as matérias usuais da boa educação inglesa,
além de francês, pintura e música (naquela época, leitor, essa relação de
habilidades que agora parece pouca, era considerada bastante abrangente).
Respostas para J.E., Posta Restante – Lowton, Condado de...”
Esse documento ficou trancado na minha escrivaninha o dia todo.
Após o chá, pedi licença à nova superintendente para ir a Lowton, para
resolver alguns encargos para mim e um ou dois para minhas colegas
professoras. A permissão foi rapidamente concedida, e eu fui. Era uma
caminhada de mais de três quilômetros, e o entardecer estava úmido, mas
os dias ainda eram longos. Visitei uma ou duas lojas, coloquei a carta no
correio, e voltei debaixo de um aguaceiro, com as roupas encharcadas, mas
o coração aliviado.
A semana seguinte me pareceu interminável. Finalmente chegou
ao fim, no entanto, como todas as coisas mundanas. E, uma vez mais, ao
entardecer de um agradável dia de outono, encontrei-me caminhando pela
estrada de Lowton. Era um caminho pitoresco, a propósito, acompanhando
o regato e as doces curvas do vale. Mas nesse dia eu pensava mais nas
cartas, que podiam ou não estar me esperando no vilarejo, que nos
encantos da pradaria ou das águas.
Minha tarefa declarada nessa ocasião era tirar as medidas para um
novo par de sapatos. Assim, desincumbi-me primeiro dessa tarefa e depois
segui pela quieta e limpa ruazinha do sapateiro até o correio. Era dirigido
por uma velha senhora, que usava óculos de chifre no nariz e luvas pretas
nas mãos.
– Há alguma carta para J.E.? – perguntei.
Ela me observou por sobre os óculos, então abriu uma gaveta e
remexeu-lhe o conteúdo por longo tempo – tão longo que a esperança
começou a me abandonar. Por fim, segurando um envelope diante dos
óculos por quase cinco minutos, entregou-me o documento por sobre o
guichê, acompanhando o gesto com outro olhar inquisitivo e desconfiado...
este dirigido a J.E.
– Só tem uma? – perguntei.
– Não tem nenhuma outra – disse ela. Então meti o envelope no bolso e me dirigi para casa. Não podia
abri-la ali. O regulamento me obrigava a estar de volta até as oito horas e
já eram mais de sete e meia.
Quando cheguei tinha várias obrigações me esperando. Devia
acompanhar as meninas enquanto faziam as lições. Depois era a minha vez
de ler as preces e levá-las para a cama. Então tinha que cear com as
professoras. Quando finalmente me retirei para o quarto, ainda tinha a
companhia da inevitável Miss Gryce. Havia apenas um toco de vela no
candelabro, e temi que ela falasse até que a vela queimasse inteiramente.
Para minha sorte, todavia, a pesada ceia que ela devorara surtira um efeito
soporífero. Já estava roncando antes que eu terminasse de me despir.
Restava ainda uma polegada de vela. Peguei a carta. O lacre continha um
F. Quebrei-o. O conteúdo era breve.
“Se J.E., que anunciou no Herald de quinta-feira passada, possuir
as qualificações mencionadas, e se estiver em condições de fornecer
referências satisfatórias quanto a caráter e competência, oferece-se uma
colocação onde há apenas uma aluna, uma menina de dez anos de idade;
salário de trinta libras por ano. Pede-se a J. E. que mande referências,
nome, endereço e todos os detalhes para:
Mrs. Fairfax, Thornfield, perto de Millcote, Condado de...”
Examinei longamente o documento. A letra era antiquada e um
tanto irregular, como a de uma senhora idosa. Essa circunstância me
agradou: sentia um medo muito grande de que, agindo por minha própria
conta e segundo meu discernimento, pudesse cair em alguma cilada. E,
acima de tudo, desejava que o resultado de meus esforços fosse algo
respeitável, apropriado, en règle. Senti que uma senhora idosa não era algo
ruim no negócio que eu tinha em mãos. Mrs. Fairfax! Vi-a num vestido
preto e véu de viúva. Fria, talvez, mas não indelicada: um modelo da
antiga respeitabilidade inglesa. Thornfield! Sem dúvida era o nome da sua
residência: um lugar limpo e ordeiro, eu estava certa, mas talvez falhasse
em imaginar corretamente todas as premissas. Millcote, condado de...
Busquei nas minhas lembranças o mapa da Inglaterra. Sim, agora via o
condado e a cidade, ficava cem quilômetros mais perto de Londres do que o lugar remoto em que eu vivia, o que para mim era uma recomendação.
Ansiava por ir a lugares onde houvesse vida e movimento. Millcote era
uma grande cidade industrial, um lugar agitado, sem dúvida. Melhor
assim, pelo menos seria uma mudança completa. Não que a minha
imaginação fosse muito atraída por altas chaminés e nuvens de fumaça...
“Mas” imaginava eu “Thornfield provavelmente deve ficar a uma boa
distância da cidade.”
Nesse momento o pavio do candeeiro acabou, não havia mais luz.
No dia seguinte novas providências tinham que ser tomadas.
Meus planos não podiam mais ficar confinados em minha cabeça, devia
partilhá-los para que pudesse ter sucesso. Solicitei e obtive uma audiência
com a superintendente, no recreio do meio-dia. Disse-lhe que tinha a
possibilidade de obter uma colocação com um salário que era o dobro do
que recebia em Lowood (onde ganhava apenas quinze libras por ano).
Pedi-lhe que falasse por mim com Mr. Brocklehurst, ou com alguém do
comitê, e perguntasse se podia mencioná-los como referência. Ela
amavelmente concordou em servir de intermediária. No dia seguinte expôs
o assunto a Mr. Brocklehurst, que disse que deviam escrever a Mrs. Reed,
pois era minha tutora oficial. Um bilhete foi enviado à dama, que
respondeu dizendo que “eu podia fazer o que desejasse, pois há muito
tempo desistira de interferir nos meus negócios”. Esse bilhete foi
apresentado a todos os membros do comitê e, finalmente, após o que me
pareceu a mais aborrecida demora, deram-me licença para procurar outra
colocação melhor, se desejasse. Forneceram-me uma declaração de que eu
sempre me conduzira corretamente, tanto como aluna quanto como
professora em Lowood, e um atestado de bom caráter e da minha
capacidade, assinado pelos inspetores da instituição.
Esse documento me foi entregue cerca de um mês depois e
mandei uma cópia para Mrs. Fairfax. Recebi a resposta da dama, dizendose satisfeita e fixando um prazo de quinze dias para que eu assumisse o
cargo de governanta em sua casa.
Comecei a ocupar-me com os preparativos, e a quinzena passou
rapidamente. Não tinha um guarda roupa muito grande, embora fosse adequado às minhas necessidades. O último dia foi suficiente para arrumar
o meu baú... o mesmo que trouxera de Gateshead oito anos atrás.
Amarrei e etiquetei o baú. Em meia hora chegaria o carregador
para levá-lo a Lowton, para onde eu mesma devia me dirigir muito cedo na
manhã seguinte para pegar a diligência. Escovei meu vestido de viagem
preto, preparei o chapeu, as luvas e o agasalho para as mãos. Olhei todas
as gavetas para ver se não esquecera de nada. E não havendo nada mais a
fazer, sentei-me e tentei descansar. Não consegui. Embora tivesse ficado
de pé o dia todo, não conseguia descansar, estava muito excitada. Uma
fase da minha vida se encerrava hoje e outra começava amanhã. Era
impossível dormir nesse intervalo, devia permanecer em ardente vigília
enquanto essa mudança acontecia.
– Miss – disse uma criada que me encontrou no saguão, vagando
como uma alma penada – Tem uma pessoa lá embaixo que quer lhe falar.
“Deve ser o carregador” pensei.
Desci as escadas sem fazer perguntas. Estava me dirigindo à
cozinha e passava pela sala das professoras, cuja porta estava entreaberta,
quando alguém saiu correndo em minha direção:
– É ela, tenho certeza!... Eu a reconheceria em qualquer lugar! –
exclamou a pessoa, interpondo-se no meu caminho e pegando minha mão.
Olhei para uma mulher que parecia uma criada bem vestida,
matronal, mas ainda jovem. Tinha ótima aparência, olhos e cabelos negros
e um semblante vivo.
– Bem, quem sou eu? – ela perguntou, com uma voz e um sorriso
que não me eram estranhos. – Será que se esqueceu de mim, Miss Jane?
Num segundo abracei-a e beijei-a com entusiasmo.
– Bessie! Bessie! Bessie! – era tudo que eu conseguia dizer.
Ela ria e chorava, e nos dirigimos para a sala de visitas. Perto do
fogo sentava-se uma criaturinha de três anos de idade, de calça e blusa
xadrez.
– Este é o meu menino – disse Bessie.
– Então casou-se, Bessie? – Sim, há quase cinco anos, com Robert Leaven, o cocheiro.
Tenho uma menininha além do Bobby aqui, que batizei com o nome de
Jane.
– Então não mora mais em Gateshead?
– Moro no chalé da portaria. O antigo porteiro foi embora.
– Bem, e como vão todos por lá? Conte-me tudo sobre eles,
Bessie. Mas, sente-se. Bobby, quer vir sentar-se no meu colo?
Mas Bobby preferiu ficar ao lado da mamãe.
– Você não cresceu muito, nem ficou robusta, Miss Jane –
continuou Mrs. Leaven. – Acho que não a trataram direito na escola. Miss
Eliza é mais alta e mais forte. E Miss Georgiana daria duas de você na
largura dos ombros.
– Georgiana deve estar muito bonita, não é, Bessie?
– Muito. Ela passou uma temporada em Londres com a mãe, no
inverno passado, e foi muito admirada por todos. Um jovem cavalheiro
apaixonou-se por ela, mas a família dele foi contra o casamento. E então...
o que acha que aconteceu? Ele e Miss Georgiana tentaram fugir, mas
foram encontrados e impedidos. Foi Miss Eliza quem os encontrou, acho
que estava com inveja. Agora as duas vivem que nem cão e gato, sempre
discutindo...
– Bem, e John Reed?
– Ah, ele não está se saindo tão bem quanto a mãe deseja. Foi
mandado para o colégio, mas acabou sendo expulso... Depois os tios
queriam que ele se tornasse advogado, e estudasse leis. Mas ele é um
jovem tão dissoluto que acho que não vai servir para nada.
– E que aparência ele tem?
– Ele é bem alto, muitos dizem que é um belo rapaz. Mas tem os
lábios tão grossos...
– E Mrs. Reed?
– A senhora parece forte e aparentemente bem, mas seu espírito
não tem paz. A conduta de Mr. John lhe dá muito desgosto... ele gasta um monte de dinheiro!
– Foi ela que lhe mandou vir, Bessie?
– Não, que ideia! Faz muito tempo que queria vê-la, e quando
soube que chegou uma carta dizendo que estava se mudando para outra
parte do país, pensei que era o momento de vir, antes que ficasse fora do
meu alcance.
– Temo que tenha se desapontado comigo, Bessie.
Disse isso rindo, pois notei que o olhar de Bessie, embora
mostrasse afeto, não mostrava admiração.
– Não, Miss Jane, não exatamente. Você está bastante educada,
parece uma dama. Está como eu esperava: nunca foi uma grande beleza
quando criança.
Sorri ante a franca resposta de Bessie. Sabia que ela tinha razão,
mas confesso que não era indiferente ao que dissera. Aos dezoito anos a
maioria das moças quer agradar, e a convicção de que não possuem um
aspecto exterior que possa dar suporte a esse desejo, não é agradável para
ninguém.
– Mas imagino que é bastante inteligente – continuou Bessie,
como forma de consolo. – O que sabe fazer? Toca piano?
– Um pouco.
Havia um piano na sala. Bessie foi até ele e abriu-o, depois me
pediu que tocasse uma melodia. Toquei uma ou duas valsas e ela ficou
encantada.
– As duas senhoritas Reed não tocam tão bem! – disse ela,
exultante. – Eu sempre disse que a senhorita iria passar na frente delas nos
estudos. E sabe pintar, também?
– Essa pintura sobre a lareira é trabalho meu – disse.
Era uma aquarela representando uma paisagem. Eu a dera de
presente à superintendente, para agradecer sua amável mediação perante o
comitê. Ela mandara emoldurar e colocar um vidro.– Nossa! Que linda, Miss Jane! É tão linda quanto qualquer das
pinturas do professor de Miss Eliza. Sem falar nas duas moças, que nem
podem se comparar a você. Aprendeu francês?
– Sim, Bessie. Leio e falo francês.
– E sabe bordar em musselina e tela?
– Sei, sim.
– Ah! É uma verdadeira dama! Eu sabia que seria. Vai conseguir
se sair bem, quer seus parentes saibam ou não. Mas há uma coisa que
quero lhe perguntar. Alguma vez soube notícias dos parentes de seu pai, os
Eyre?
– Jamais.
– Bem, sabe que Mrs. Reed sempre disse que eles eram uns
pobretões desprezíveis. Pode ser que sejam pobres, mas são tão nobres
quanto os Reed. Um dia, há quase sete anos, um certo Mr. Eyre veio a
Gateshead perguntando por você. Mrs. Reed então disse que você estava
na escola, a oitenta quilômetros dali. Ele ficou muito desapontado, pois
não podia se demorar. Ia embarcar para o exterior, num navio que sairia de
Londres dali a um ou dois dias. Parecia um verdadeiro cavalheiro, e acho
que era o irmão do seu pai.
– Para que país ele estava indo, Bessie?
– Uma ilha, distante milhares de quilômetros, onde fazem vinho...
O mordomo foi quem me falou...
– Ilha da Madeira? – eu sugeri.
– Sim, é essa! O nome é esse.
– Então, ele partiu?
– Sim, não ficou muito tempo na casa. A senhora foi muito altiva
com ele, chamou-o depois de “comerciante desonesto”. O meu Robert
acredita que ele é um comerciante de vinhos...
– Provavelmente – respondi – ou talvez um representante ou
agente de um mercador de vinhos. Bessie e eu ainda conversamos por uma hora sobre os velhos
tempos, até que ela foi obrigada a partir. Na manhã seguinte ainda a vi de
novo, enquanto esperava a diligência em Lowton. Nos despedimos,
finalmente, na porta de Brocklehurst Arms. Cada uma tomou seu rumo.
Ela dirigiu-se para perto de Lowood, onde pegaria o transporte para
Gateshead. Eu tomei o veículo que me levaria às minhas novas obrigações
e a uma nova vida, nos desconhecidos arredores de Millcote.

Jane Eyre - Charlotte Brontë Onde histórias criam vida. Descubra agora