Arranhões

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Para aqueles que se arriscam a algo sincero, reconhecendo a própria mesquinhez.

Arranhões

I

Não é de minha vontade ser sensacionalista ou mesmo parecer estar atrás de algum reconhecimento por ter vivido talvez uma situação única. Me sinto na verdade com obrigação de expressar meu desejo de que ninguém além de mim tenha vivenciado algo próximo do que pretendo narrar adiante. Também me tranquiliza o fato de não conseguir crer que outros olhos verão estas palavras (afinal nem mesmo eu as lerei assim que finalizadas). Vou arquivá-las e então trabalhar intensamente, da maneira que for preciso para que tudo o que passei seja esquecido de uma vez por todas e eu possa finalmente viver dias normais.

Tudo aconteceu mais ou menos assim:

Minha antiga casa e a vizinha dela eram construções que muito se diferenciavam em tamanho e forma, mas que foram erguidas quase que no mesmo período, com a menor parte do terreno sendo meu e a maior ficando em posse do casal proprietário, que exagerou no tamanho da construção, principalmente se levar em conta que o espaço seria para duas pessoas que sequer ficavam muito tempo ali. Eram daquela espécie de vizinhos endinheirados que pouco se vê e nunca se tem contato, mas que muito se imagina como vivem seus dias. Esta curiosidade que eu possuía acerca daquelas pessoas alimentava minha imaginação, que criava para eles um mundo onde eram os seres mais extraordinários e amáveis a se conhecer; e por outro lado em meus pensamentos mais furtivos eu sabia que eram pessoas comuns, feitas de uma boa dose de erros e acertos, como quaisquer outras.

É realmente uma pena que eu estivesse tão enganado sobre aqueles dois monstros. Nada de bom poderia vir deles. Deus! Como desejei que fossem normais e assim minha fé na bondade humana ainda poderia existir.

II

Foi em meados de junho de 2022 que toda a situação começou mesmo a se desenrolar. Lembro que um dia após o casal sair em viagem, foi que tive o primeiro contato com aquela condição que viria a piorar. Estava eu saindo de casa para o trabalho numa tarde de sol intenso, quando os vi passando por mim no bonito SUV azul escuro deles. Sorriam como duas crianças que brincavam gostosamente e pareciam não ter preocupações na vida. Apenas viviam como um casal aparentemente perfeito.

Duas noites após viajarem é que começaram os primeiros arranhões. Quanto ao local, é necessário que eu seja acurado para que não haja dúvidas: tudo se passou na parede do meu antigo quarto, onde minha escrivaninha ficava encostada. A primeira madrugada de arranhões foi irrelevante, só comecei a dar uma séria atenção aos barulhos noites após o início. A estranha situação gerada pelos sons incomuns e o padrão criado entre os intervalos foi a receita perfeita para alimentar minha imaginação do que poderia ser a causa daquilo. Até minhas mais necessárias obrigações ficavam de lado para que eu dedicasse minha atenção naquela desesperada sequência de clamores na parede. Conforme os sons progrediam, eu ia ficando mais e mais espantado. Com a assombrosa novidade se descortinando à minha frente, tentava prestar atenção para interpretar os sons; mas quando imaginava a situação atingindo o clímax e o barulho se transformando em algo concreto, o tudo se reduzia a nada num estalar de dedos e eu me via novamente de volta ao meu mundo comum.

Na calma depois de me ver tão tenso, me fazia perguntas rápidas buscando um desenlace racional que colocasse fim ao temor que sentia. Sempre procurava simplificar tudo e assim conseguia fingir que fora um delírio repentino e dava seguimento aos meus afazeres, que muitas vezes iam até o amanhecer.

Todos os dias, desde os primeiros arranhões eu pensava ser a última vez que aconteceria aquele fenômeno. Julgava os sons como se fossem uma eventualidade rápida e passageira, como é o som do degelo de um freezer ou do ar que entra num galão d'água; ambos produzindo barulhos tão repentinos que alarmam qualquer desprevenido nos momentos mais inesperados.

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