44. Nós Somos Os Mesmos No Escuro

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O relógio de pulso de Mat vibrou, indicando que eram duas e meia da manhã.

Ele acordou de um cochilo conturbado e desconfortável no chão duro da empoeirada estação de trem, ainda abraçado com a arma como uma criança agarra um urso de pelúcia.

Seus olhos demoraram a acomodar-se ao escuro, mas ele o fez. Sentiu primeiro o cheiro do pó velho dali de baixo, e só então lembrou-se de onde estavam, o que faziam, e de todos os pormenores de um plano que David confiou a eles, mas tinha tantos possíveis furos que, secretamente, Mateus Caldas já não sabia mais se daria certo.

De uma coisa ele tinha certeza, e nunca ousaria verbalizar, mas sabia que, se seu povo conseguisse chegar em Nóvora, não seriam todos que o fariam.

Quem ficaria para trás? Porque não foi rápido o suficiente, ou por má sorte, ou acaso, ou velhice, ou juventude, ou amor, ou burrice. Mat sentou-se, olhou em volta na plataforma, para os outros ao seu redor, e pensou: todos nós chegaremos lá?

E o barulho que reverberou pela plataforma o fez sobressaltar-se.

Todos o olhavam, porque vinha de sua mochila.

Mat olhou no relógio de novo, para certificar-se antes de ficar preocupado. Duas e trinta e dois.

– Merda – ele xingou, baixo, e tirou o rádio da mochila, que agora chiava. Estava cedo. Não era para isso acontecer agora. Não era para ligarem agora, porra.

Mas o rádio portátil estava com a luz vermelha piscando. Então, enquanto os outros o cercavam com a mesma preocupação estampada nas faces, Mateus Caldas apertou o botão na lateral do rádio, e ouviram desespero na voz de David.




Há dez anos, de volta a uma época em que os cabelos brancos de David eram menos abundantes, o presidente de Chiaroscuro, Olívio Meyers, decretou que seu chefe de segurança resgatasse os iguais aos seus em um continente tomado por Corvos. Isso foi antes de seus inimigos perceberem suas intenções e decidirem subir barreiras e mais barreiras para mantê-los ali até que definhassem.

Esse era o plano dos Corvos.

David Prior, por outro lado, arquitetou os seus próprios.

Tornou as catacumbas de Havenna um lugar onde centenas pudessem crescer, fez comida chegar no povo, e administrou todas as crises de uma sociedade enquanto pensava, com afinco e detalhismo, em como os levaria para Nóvora, onde Meyers e toda a sua gente o esperava com a promessa de uma utópica mas deslumbrante liberdade.

David Prior arquitetou tudo.

Suas redes de apoio, suas trajetórias, as lentes de contato, a entrada em Luso, os cargos que os aproximavam de gente importante, o dinheiro que precisavam para sobreviver, as linhas de trem que precisavam desvendar para levá-los de Tâmara, a cidade vizinha abandonada com acesso subterrâneo a Luso, para o porto, onde pegariam um barco e, com sorte, com o mínimo possível de derramamento de sangue de seu povo, navegariam em segurança por águas calmas e seriam recebidos de braços abertos pelos homens que os contactavam periodicamente para saber se ainda estavam vivos.

David pensou naquilo por dez anos inteiros. Em tudo que podia dar errado.

Mas não pensou naquele gigantesco empecilho que era uma parede desmoronada à frente deles, do chão ao teto, impossível de ultrapassar, depois de andarem horas pelos trilhos inutilizados de Tâmara em direção a Luso.

Por minutos que pareceram horas, tudo o que o homem fez foi continuar apontando a lanterna para os destroços do túnel que os impediam de continuar.

Era a solidificação de seus pesadelos. O primeiro passo para tudo dar errado.

Olhos de CorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora