Capítulo 17

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Passou-se uma semana sem nenhuma notícia de Mr. Rochester.
Dez dias, e ele ainda não voltara. Mrs. Fairfax disse que não ficaria
surpresa se ele fosse direto de Leas para Londres, e de lá para o continente,
e só aparecesse novamente em Thornfield no ano seguinte. Mais de uma
vez ele partira assim, dessa maneira súbita e inesperada. Quando ouvi isso,
comecei a sentir um estranho frio e uma fraqueza no coração. Na verdade,
já estava tendo uma doentia sensação de desapontamento. Mas, reunindo
minhas energias e recordando meus princípios, dominei esses sentimentos.
E foi espantoso como superei esse engano temporário, como afastei o erro
de supor que os movimentos de Mr. Rochester tivessem algum interesse
vital na minha vida. Não que eu me sentisse humilhada por algum
escravizante sentimento de inferioridade. Ao contrário. Apenas disse a
mim mesma:
“Você não tem nada a ver com o dono de Thornfield, além de
receber o salário que ele lhe paga para ensinar a menina e ser grata pelo
tratamento respeitoso e gentil que, se cumprir bem sua missão, tem o
direito de esperar da parte dele. Esteja certa de que esse é o único laço que
ele reconhece entre vocês dois. Assim, não faça dele o objeto dos seus
belos sentimentos, seus devaneios, suas agonias... e siga adiante! Ele não é
do seu nível: mantenha-se no seu lugar. Seja respeitosa e não se permita
amar com toda a força do seu coração e da sua alma alguém que não
deseja essa dádiva e pode desprezá-la.”
Prossegui com tranquilidade nas minhas ocupações diárias. Mas,
aqui e ali, surgiam em minha mente vagas sugestões de motivos pelos
quais eu deveria deixar Thornfield. E me vi involuntariamente preparando
anúncios e conjeturando sobre novas colocações. Não pensei em reprimir
esses pensamentos. Que germinassem e dessem frutos, se pudessem.
Mr. Rochester estava ausente há mais de quinze dias, quando o
carteiro trouxe uma carta para Mrs. Fairfax. – É do patrão – ela disse, enquanto olhava o endereço. – Agora
imagino que saberemos melhor se ele volta ou não.
E enquanto ela quebrava o lacre e examinava o documento,
prossegui tomando meu café (estávamos na mesa do café da manhã). Fazia
calor, e atribui a essa circunstância o intenso rubor que de repente tomou
conta do meu rosto. Preferi não conjeturar porque minhas mãos tremiam, e
porque derramei metade do café no pires.
– Bem, às vezes penso que a casa está muito quieta. Mas agora
teremos uma chance de nos ocupar bastante, ou pelo menos por um tempo
– disse Mrs. Fairfax, ainda segurando a carta diante do rosto.
Antes de me permitir pedir alguma explicação, atei o laço do
avental de Adele, que estava solto. Ajudei a servi-la de outro pãozinho e
tornei a encher sua caneca com café. Disse então, com o maior sangue
frio:
– Imagino que Mr. Rochester não vai retornar tão cedo...
– Na verdade, ele vai... Daqui a três dias estará aqui, diz ele.
Quinta-feira próxima, portanto. E não vem sozinho. Não sei quantos
daqueles elegantes convidados de Leas virão com ele. Só sei que mandou
preparar todos os melhores quartos e limpar a biblioteca e as salas de
visitas. Devo mandar vir ajudantes de cozinha da Estalagem George em
Millcote, e de onde mais puder. As damas trarão suas criadas de quarto e
os cavalheiros também virão com seus valetes. Vamos ter uma casa cheia.
E Mrs. Fairfax engoliu o café e saiu apressada para começar os
preparativos.
Como ela previra, foram três dias bastante cheios. Sempre achei
todos os cômodos de Thornfield agradavelmente limpos e bem arranjados,
mas parece que me enganava. Vieram três mulheres para ajudar. E foi um
tal de esfregar, escovar, lavar, bater tapetes, tirar e recolocar quadros, polir
espelhos e lustres, acender lareiras nos quartos, arejar lençóis e cobertores,
como eu nunca vi antes na minha vida, nem voltei a ver depois. Adele
corria no meio de tudo aquilo, completamente agitada. As preparações e a
perspectiva da chegada de convidados pareciam levá-la ao delírio. Pediu a
Sophie que examinasse todas as suas “toilettes”, como ela chamava os seus vestidos, separasse os que estivessem “passées” – fora de moda –
além de arejar e reparar os mais novos. Fora isso, nada mais fazia senão
dar cambalhotas nos quartos da frente, pular em cima dos estrados das
camas, e esparramar-se nos colchões e nas pilhas de almofadas e
travesseiros diante dos enormes fogos que rugiam nas lareiras. Estava
dispensada dos deveres escolares. Mrs. Fairfax havia pedido minha ajuda e
eu passava o dia na despensa, ajudando (ou atrapalhando) a ela e à
cozinheira, e aprendendo a fazer pudins de ovos, tortas de requeijão e
doces franceses, e a preparar pratos de caça e guarnecer sobremesas.
A chegada do grupo estava prevista para a tarde de quinta-feira, a
tempo de jantar às seis. Durante esse período não tive tempo para
alimentar quimeras, e acho que estava mais ativa e alegre do que qualquer
um... exceto Adele. Ainda assim, vez por outra recebia um golpe
desalentador na minha alegria e, a despeito de mim mesma, voltava à
nebulosa região das dúvidas, presságios e negras conjeturas. Era quando
via por acaso a porta da escada do terceiro andar (que ultimamente vivia
trancada) abrir-se devagar e dar passagem ao vulto de Grace Poole, de
touca limpa, avental branco e lenço; quando a via deslizar pelo corredor,
seus passos leves abafados pelas chinelas macias; quando a via olhar para
dentro dos quartos – onde reinava a agitação – apenas para dizer uma
palavra à faxineira sobre a maneira correta de polir uma grade de metal,
ou um consolo de mármore, ou tirar as nódoas do papel de parede, e depois
seguir adiante. Ela ainda descia até a cozinha uma vez por dia, almoçava,
fumava um pequeno cachimbo junto ao fogo e voltava, levando a caneca
de cerveja com ela para a solidão do seu sótão triste e sombrio. Das vinte e
quatro horas do dia, ficava apenas uma com suas companheiras lá
embaixo. Todo o resto do seu tempo era passado em algum quarto de teto
baixo e forrado de carvalho, no terceiro andar. Ali sentava-se e costurava –
e provavelmente ria sozinha – tão solitária quanto uma prisioneira numa
masmorra.
A coisa mais estranha de tudo era que ninguém na casa, exceto eu,
estranhava os seus hábitos, ou parecia reparar neles. Ninguém discutia sua
posição na casa, nem tinha pena de sua solidão e isolamento. Uma vez, no
entanto, ouvi parte de um diálogo entre Leah e uma das faxineiras em que o assunto era Grace. Leah havia dito algo que eu não ouvira, e a faxineira
observou:
– Ela deve ganhar um bom salário, não é?
– Sim – disse Leah – quem me dera eu recebesse um salário tão
bom! Não que eu possa me queixar, não há mesquinharia em Thornfield,
mas não ganho um quinto do que Mrs. Poole ganha. E ela está
economizando: uma vez a cada três meses vai ao banco em Millcote. Não
me espanta se já tiver o bastante para ser independente, se acaso deixar
Thornfield. Mas acho que se acostumou aqui. Ainda assim, não tem nem
quarenta anos, e ainda está bem forte e capaz. É muito cedo para ela deixar
de trabalhar.
– Ela deve ser de grande ajuda – disse a faxineira.
– Ah, sim! Ela sabe o que deve fazer, melhor do que ninguém! –
respondeu Leah, de modo significativo. – E não é qualquer uma que pode
fazer o que ela faz... mesmo com o seu salário.
– Ah, é mesmo! – foi a resposta. – Fico pensando se o patrão...
A faxineira ia continuar, mas Leah voltou-se nesse momento,
notou minha presença e, imediatamente cutucou a companheira.
– Ela não sabe? – ouvi a mulher cochichar.
Leah sacudiu a cabeça e mudaram de assunto. Tudo que entendi
da conversa foi isto: havia um mistério em Thornfield, e eu supostamente
fora excluída de qualquer participação nele.
Finalmente chegou a quinta-feira. O trabalho terminara na tarde
do dia anterior. Os tapetes foram recolocados, os cortineiros enfeitados, as
colchas estendidas, as penteadeiras arrumadas, a mobília lustrada e flores
dispostas nos vasos. Os quartos e as salas pareciam tão brilhantes e limpos
quanto possível. O saguão também fora lustrado, e a moldura do antigo
relógio, os corrimões e degraus da escada estavam polidos como cristais.
Na sala de jantar, o bufê parecia resplandecer com a prataria. Na sala de
visitas e no boudoir havia vasos com flores exóticas por todo o lado.
A tarde chegou e Mrs. Fairfax colocou o seu melhor vestido preto
de cetim, as luvas e o relógio de ouro, pois era sua obrigação receber os convidados e levar as damas aos seus quartos. Adele também devia ser
vestida, apesar de eu achar que ela tinha pouca chance de ser apresentada
ao grupo naquela noite. Todavia, para agradá-la, permiti que Sophie a
vestisse com um dos seus vestidos curtos de musseline. Quanto a mim,
não havia necessidade de qualquer mudança. Não deveria ser convidada a
deixar o santuário da sala de aulas, pois para mim ela era agora um
santuário, um refúgio agradável em tempos de tormenta.
Era um dia ameno e calmo de primavera. Um daqueles dias que,
entre o fim de março e o começo de abril, brilhava sobre a terra como um
arauto do verão. Já estava anoitecendo, mas ainda estava quente. Senteime a trabalhar na sala de aulas, com a janela aberta.
– Está ficando tarde – disse Mrs. Fairfax, ao entrar com o vestido
farfalhando. – Estou feliz de ter pedido o jantar uma hora mais tarde que o
habitual, pois já passa das seis. Mandei John até os portões para ver se
vem vindo alguém na estrada. Dali se vê um bom pedaço na direção de
Millcote.
Foi até a janela.
– Aí está ele! – disse ela – Bem, John, alguma novidade?
– Eles estão chegando, madame – foi a resposta. – Estarão aqui
em dez minutos.
Adele correu para a janela. Eu a segui, tomando cuidado para
ficar de lado, encoberta pela cortina, de onde podia ver sem ser vista.
Os dez minutos de John pareceram intermináveis, mas afinal
ouviu-se o barulho de rodas. Quatro cavaleiros vinham à frente, seguidos
por duas carruagens abertas. Véus flutuantes e plumas ondulantes enchiam
os veículos. Dois dos cavaleiros eram jovens de bela aparência e arrojados.
O terceiro era Mr. Rochester, no seu cavalo negro, Mesrour, com Pilot à
frente. Ao lado dele havia uma dama, e os dois eram os primeiros do
grupo. Seu casaco de montaria púrpura quase encostava no chão, o longo
véu flutuava na brisa. E brilhando entre as dobras do véu transparente,
distinguiam-se ricos cachos negros.
– Miss Ingram! – exclamou Mrs. Fairfax, e correu para assumir
seu posto lá embaixo. s cavaleiros, seguindo a curva do caminho, logo dobraram o
ângulo da casa, e eu os perdi de vista. Adele implorava para descer. Eu a
peguei no colo e a fiz entender que ela não devia, em hipótese alguma,
aparecer perante as damas, nem agora nem em qualquer outra ocasião, a
menos que fosse expressamente convidada. Disse-lhe que Mr. Rochester
ficaria muito zangado com ela. “Ela derramou algumas lágrimas
verdadeiras”[25] quando ouviu isso, mas como eu parecia muito aborrecida,
resolveu enxugá-las. Agora ouvia-se uma alegre movimentação no saguão: as vozes
profundas dos cavalheiros mesclavam-se harmoniosamente com os tons
argentinos das damas. Acima de todas, embora não fosse alta, ouvia-se a
voz sonora do senhor de Thornfield Hall, dando as boas vindas à sua casa
aos belos e galantes hóspedes. Em seguida, passos leves subiram as
escadas, houve movimento no corredor, alguns risos suaves e
harmoniosos, o ruído de portas que se abriam e fechavam. Depois, por
algum tempo, apenas silêncio.
– Elles changent de toilettes – disse Adele, que escutava
atentamente e seguia cada movimento. Então suspirou. – Chez maman,
quand il y avait du monde, je le suivais partout, au salon et à leurs
chambres. Souvent je regardais les femmes de chambre coif er et habiller
les dames, et c’était si amusant: comme cela on apprend [26].
– Não está com fome, Adele ? – Mais, oui, mademoiselle: voilà cinq ou six heures que nous
n’avons pas mangée.[27]
– Bem, enquanto as damas estão nos seus quartos, vou tentar
descer e pegar algo para comer.
E saindo do meu refúgio com toda a precaução, procurei uma
escada nos fundos que levava diretamente à cozinha. Tudo ali era fogo e
comoção. A sopa e o peixe estavam sendo finalizados, e a cozinheira
inclinava-se sobre as caçarolas, num frêmito de corpo e de alma que
ameaçava uma combustão espontânea. Na sala dos criados, dois cocheiros
e três valetes se agrupavam, de pé ou sentados ao redor do fogo. As
criadas, creio, estavam no andar de cima com suas patroas. Os novos
empregados, que haviam sido contratados em Millcote, movimentavam-se por toda parte. Enveredando por esse caos, finalmente cheguei à despensa.
Ali me apoderei de um frango frio, um pedaço de pão, alguns bolos, dois
pratos, facas e garfos. Com o meu butim, fiz uma retirada rápida. Voltei ao
corredor e estava fechando a porta de trás quando um forte rumor indicoume que as damas estavam saindo dos quartos. Não podia ir até a sala de
aulas sem passar na frente de algumas das portas, correndo o risco de ser
surpreendida com a minha carga de víveres. Então fiquei parada ali no fim
do corredor, que era um tanto escuro, pois não havia janelas naquela parte.
Agora estava ainda mais escuro, pois o sol já havia se posto e o crepúsculo
avançava.
Nesse momento, as belas hóspedes saíram de seus quartos, uma
após a outra. Cada qual mais alegre e radiante, com vestidos brilhantes que
luziam no escuro. Por um momento reuniram-se todas na outra
extremidade do corredor, conversando num tom de controlada vivacidade.
Então desceram as escadas quase sem ruído algum, como brilhantes
espirais de névoa descendo de uma colina. Sua aparição coletiva deixarame uma impressão de elegância de berço, como eu nunca vira antes.
Encontrei Adele espiando pela porta entreaberta da sala de aulas.
– Que damas lindas! – exclamou ela, em inglês. – Quem dera eu
pudesse ir até elas! Acha que Mr. Rochester vai nos chamar depois do
jantar?
– Não creio, na verdade. Mr. Rochester tem outras coisas em que
pensar. Não se preocupe mais com as damas por hoje. Talvez possa vê-las
amanhã. Aqui está o seu jantar.
Ela realmente estava com fome, assim o frango e os bolos
acabaram por distraí-la durante algum tempo. Foi bom que eu garantisse
essa refeição. Senão, tanto ela como eu e Sophie, a quem eu enviara um
pouco de comida, corríamos o risco de ficar totalmente sem jantar. Todos
lá embaixo estavam ocupados demais para pensar em nós. A sobremesa
não foi servida senão às nove, e às dez os lacaios ainda estavam andando
de lá para cá com bandejas e xícaras de café. Permiti que Adele ficasse
acordada até mais tarde que de costume, pois ela dissera que não poderia
dormir enquanto ouvisse as portas batendo lá embaixo e pessoas se
movimentando. Além disso, podia vir um chamado de Mr. Rochester quando ela já tivesse se despido “et alors, quel dommage!” – seria uma
pena!
Contei-lhe histórias enquanto ela se dispôs a ouvi-las e, para
distraí-la, levei-a para o corredor. Agora a lâmpada do saguão estava
acesa, e ela se distraiu olhando por sobre a balaustrada, observando o
vaivém dos criados. Quando a noite já avançava, ouviu-se som de música,
vindo da sala de visitas, onde fora colocado o piano. Adele e eu sentamos
nos degraus mais altos da escada para escutar. Então ouviu-se uma voz que
se juntava ao instrumento, de uma dama que cantava em notas muito
doces. Terminado o solo, seguiu-se um dueto, e depois um coro. Um
murmúrio alegre de conversas preenchia os intervalos. Escutei por muito
tempo. De repente, descobri que meus ouvidos estavam inteiramente
ocupados em analisar os sons misturados, tentando descobrir no meio da
confusão de vozes aquela de Mr. Rochester. Ao reconhecê-la, o que não
demorou, ainda tive que decifrar em palavras os sons inarticulados pela
distância.
O relógio bateu onze horas. Olhei para Adele, cuja cabeça
repousava no meu ombro. Seus olhos estavam pesados, então peguei-a no
colo e levei-a para a cama. Era quase uma hora quando as damas e os
cavalheiros se recolheram aos seus aposentos.
O dia seguinte estava tão bonito quanto o anterior, e o grupo
aproveitou para fazer um passeio a algum lugar nas vizinhanças. Saíram
de manhã cedo, alguns a cavalo, o resto nas carruagens. Testemunhei tanto
a partida quanto o retorno. Miss Ingram, como antes, era a única dama a
cavalo. E, como antes, Mr. Rochester galopava ao seu lado. Os dois
seguiam um pouco afastados do resto do grupo. Mencionei esse fato a
Mrs. Fairfax, que estava ao meu lado na janela.
– A senhora me disse que não era provável que eles pensassem
em casamento – observei – Mas é evidente que Mr. Rochester prefere a
companhia dela a qualquer uma das outras damas.
– Sim. Não há dúvida que ele a admira.
– E ela a ele – acrescentei – veja como volta a cabeça para ele,
como se estivesse numa conversa privada. Quem me dera eu pudesse ver
seu rosto, ainda não pude vê-la, nem de relance. – Vai vê-la esta noite – disse Mrs. Fairfax. – Mencionei a Mr.
Rochester o quanto Adele deseja conhecer as damas e ele disse: “Ah!
Mande que venha a sala de visitas após o jantar. E peça a Miss Eyre para
acompanhá-la”.
– Sim, mas ele disse isso apenas por delicadeza. Estou certa de
que não preciso ir – respondi.
– Bem... Eu disse a ele que, como você não está acostumada à
sociedade, é possível que não gostasse de aparecer diante de um grupo tão
alegre, e todos estranhos. E ele disse, no seu modo brusco: “Bobagem! Se
ela se recusar, diga que é um pedido especial meu. E se ainda assim
resistir, diga-lhe que se teimar em não vir eu mesmo irei buscá-la”.
– Não permitirei que se dê a esse trabalho – respondi. – Eu irei, se
não há outra saída. Mas não gosto. A senhora vai estar lá, Mrs. Fairfax?
– Não, pedi para ser dispensada, e ele concordou. Deixe-me dizerlhe como deve fazer para evitar o embaraço de uma entrada formal, que é
a parte mais desagradável do negócio. Vá para a sala de visitas enquanto
estiver vazia, antes que as damas deixem a mesa. Escolha seu lugar no
canto mais calmo que preferir. Depois que os cavalheiros vierem, não
precisa ficar por muito tempo, a menos que lhe agrade. Deixe que Mr.
Rochester veja que você está lá e então saia discretamente... Ninguém vai
notar.
– A senhora acha que os convidados ficarão aqui por muito
tempo?
– Talvez duas ou três semanas, não mais. Depois dos feriados de
Páscoa, Sir George Lynn, que foi recentemente eleito deputado por
Millcote, deve ir a Londres para tomar posse. Acho que Mr. Rochester vai
acompanhá-lo. Estou surpresa com essa longa estadia dele em Thornfield.
Foi com algum nervosismo que senti aproximar-se a hora em que
devia descer com a minha cruz para a sala de visitas. Adele esteve em
estado de êxtase durante todo o dia, depois de saber que seria apresentada
às damas naquela noite. E só sossegou quando Sophie começou a vesti-la.
A importância do momento acalmou-a rapidamente. Depois que Sophie
arrumou os seus cabelos numa cascata de cachos macios, colocou-lhe o vestidinho de cetim rosa, atou a longa faixa e vestiu-lhe as luvas de renda,
Adele parecia tão grave quanto um juiz. Não foi preciso recomendar-lhe
que não desarranjasse o traje. Quando terminou, sentou-se elegantemente
na sua cadeirinha, tendo o prévio cuidado de levantar a saia de cetim para
que não amassasse e prometeu que não iria se mexer até que eu estivesse
pronta. Isso não demorou para acontecer. Rapidamente coloquei o meu
melhor vestido – o prateado, comprado para o casamento de Miss Temple
e que eu nunca usara desde então – ajeitei o cabelo e coloquei meu único
adorno, o broche de pérolas. Descemos.
Felizmente havia outra entrada para a sala de visitas do que
aquela que atravessava a sala de jantar, onde todos estavam sentados à
mesa. Achamos a sala vazia. Um belo fogo ardia silenciosamente na
lareira de mármore, e os candeeiros luziam naquela brilhante solidão, em
meio às exóticas flores que adornavam as mesas. A cortina carmesim
estava baixada diante do arco da sala. Mesmo com essa frágil separação
entre os dois cômodos, os convidados falavam num tom de voz tão baixo
que não se podia distinguir nada da sua conversa, além de um suave
murmúrio.
Adele, que parecia estar sob a influência da mais solene
impressão, sentou-se sem uma palavra na banqueta que lhe indiquei.
Retirei-me para o banco junto à janela e, pegando um livro da mesa
próxima, tentei ler um pouco. Adele trouxe sua banqueta para junto de
mim. Pouco depois tocou o meu joelho.
– O que é, Adele?
– Est-ce que je ne peut pas prende une seule de ces fleurs
magnifiques, mademoiselle? Seulement pour completer ma toilette ?[28]– Você se preocupa demais com a sua “toilette”, Adele. Mas vou
lhe dar a flor.
Peguei uma rosa de um vaso e prendi-a na faixa da cintura. Ela
suspirou com uma satisfação inefável, como se a sua taça de felicidade
estivesse finalmente cheia. Virei o rosto para esconder um sorriso
involuntário: havia algo de ridículo, tanto quanto doloroso, na séria e inata
devoção daquela pequena parisiense a tudo que se referia à moda. Agora se ouvia o som suave de pessoas se levantando. A cortina
fora afastada. Através do arco via-se a sala de jantar, com seu grande
lustre aceso jorrando luz sobre a prataria e os cristais de um magnífico
aparelho de jantar, que cobria a longa mesa. Um grupo de senhoras parou
na entrada da sala. Entraram e a cortina foi fechada atrás delas.
Não eram mais de oito, mas como se aglomeravam davam a
impressão de um número bem maior. Algumas eram muito altas, muitas
vestidas de branco, e todas tinham atavios tão envolventes que pareciam
exaltá-las, assim como a bruma exalta a lua. Levantei-me e fiz uma
reverência. Uma ou duas inclinaram a cabeça em retribuição, as demais
apenas me olharam fixamente.
Espalharam-se pela sala, lembrando-me, pela leveza e
flexibilidade dos seus movimentos, um bando de pássaros brancos.
Algumas delas sentaram-se meio reclinadas nos sofás e otomanas. Outras
examinavam as flores e os livros dispostos nas mesas. O resto formava um
grupo perto do fogo. Todas falavam num tom baixo, mas nítido, que
parecia normal entre elas. Soube seus nomes depois, e posso agora
mencioná-los.
Primeiro, Mrs. Eshton e as duas filhas. Era evidente que ela fora
uma mulher bonita, e ainda estava bem conservada. Das filhas, a mais
velha, Amy, era de baixa estatura, ingênua, o rosto e os modos de criança e
as formas picantes. O vestido branco com faixa azul caía-lhe muito bem.
A outra, Louisa, era mais alta e mais elegante, com um rosto muito
gracioso, do tipo que os franceses chamam de “minois chiffonnée” –
carinha de cansaço. As duas eram claras como lírios.
Lady Lynn era uma figura grande e robusta, de quarenta anos
aproximadamente, muito ereta, de aparência bastante altiva, ricamente
trajada num vestido de cetim furta-cor. Sob uma tiara de pedras preciosas,
seu cabelo negro brilhava radiante à sombra de uma pluma azul-celeste.
A esposa do Coronel Dent era menos pomposa, mas parecia-se
mais com uma dama, penso eu. Era esguia, de rosto pálido e feições
nobres, e belos cabelos. Seu vestido de seda preto, seu xale de rica renda
importada e os ornamentos de pérola, agradaram-me mais do que a
colorida radiância da outra que tinha o título de dama. Mas as três que mais se destacavam, em parte, talvez por serem
as mais altas, eram a Matriarca Lady Ingram e suas filhas, Blanche e
Mary. As três eram as mais altas entre as mulheres. A Matriarca devia ter
entre quarenta e cinquenta anos, seu porte ainda era belo, o cabelo ainda
era negro (pelo menos à luz dos candeeiros), e os dentes, aparentemente,
ainda eram perfeitos. Muitos a teriam considerado uma mulher esplêndida
para a sua idade. E ela era, sem dúvida, fisicamente falando. Mas havia
uma expressão de quase insuportável arrogância no seu porte e semblante.
Tinha traços romanos, e um queixo duplo que desaparecia no pescoço
grosso como uma coluna. Seus traços me pareceram inflados e sombrios,
ainda mais estufados pelo orgulho. O queixo era sustentado pelo mesmo
princípio, numa posição ereta quase sobrenatural. Tinha os olhos
igualmente duros e cruéis, que me lembravam de Mrs. Reed. Escandia as
palavras com uma voz profunda, de inflexões muito pomposas e muito
dogmáticas... em suma: muito intoleráveis. O vestido de veludo carmim e
um xale-turbante de algum tecido indiano de estampa dourada, investiamna (creio que ela assim pensava) de uma verdadeira dignidade imperial.
Blanche e Mary tinham a mesma estatura... altas e eretas como
álamos. Mary era muito magra para a altura, mas Blanche tinha as formas
de uma Diana. Olhei-a com especial interesse, é claro. Primeiro queria ver
se sua aparência estava de acordo com a descrição de Mrs. Fairfax.
Depois, se tinha alguma semelhança com a miniatura imaginária que
pintara dela. E por fim – confesso! – para ver se era a mulher que eu
imaginava contentar o gosto de Mr. Rochester.
Tanto quanto possível, Blanche assemelhava-se bastante à minha
pintura e à descrição de Mrs. Fairfax. O busto nobre, os ombros
inclinados, o gracioso pescoço, os olhos escuros e os negros cachos
estavam todos lá... Mas e o rosto? O rosto parecia com o da mãe. Era mais
jovem e mais liso, mas tinha o mesmo cenho carregado, os mesmos traços
altaneiros, o mesmo orgulho. No entanto, seu orgulho não era tão
melancólico! Ria continuamente, mas era um riso mordaz, como a
expressão habitual do lábio arqueado e arrogante.
Dizem que o talento é presunçoso. Não sei dizer se Miss Ingram
era talentosa, mas presunçosa ela era... notavelmente presunçosa, aliás.
Engajou-se numa discussão sobre botânica com a gentil Mrs. Dent. Parece que Mrs. Dent não entendia muito dessa ciência, mas gostava de flores,
como disse, “especialmente das flores silvestres”. Miss Ingram sim,
conhecia o assunto, e começou a desfilar o vocabulário apropriado com
ares superiores. Então percebi que ela (como se fala corriqueiramente)
ironizava Mrs. Dent, isto é, zombava da sua ignorância... Sua ironia podia
ser inteligente, mas não revelava bom caráter. Tocou piano: sua execução
foi brilhante. Cantou: tinha uma bela voz. Falava francês com a mãe, e
falava bem, com fluência e boa pronúncia.
Mary tinha uma natureza mais meiga e aberta que Blanche, traços
mais suaves e a pele bem mais clara (Miss Ingram era morena como uma
espanhola)... Mas Mary tinha pouca vivacidade, faltava-lhe brilho no
olhar. Não tinha nada a dizer, e uma vez que sentava ficava imóvel como
uma estátua no seu nicho. Ambas as irmãs estavam trajadas em branco
imaculado.
E agora? Seria Miss Ingram, no meu modo de ver, uma provável
escolha de Mr. Rochester? Não saberia dizer... Não conhecia o gosto dele
em matéria de beleza feminina. Se gostasse do majestático, ela era o tipo
perfeito de majestade, e também prendada e esperta. A maioria dos
cavalheiros devia admirá-la, pensei. E que ele a admirava, parecia que já
havia provas. Para remover qualquer sombra de dúvida, faltava-me apenas
vê-los juntos.
Não imagine, leitor, que Adele ficou esse tempo todo sentada
imóvel na banqueta aos meus pés. Não. Quando as senhoras entraram ela
levantou-se, foi ao seu encontro, fez uma majestosa reverência e disse
gravemente:– Bonjour, mesdames.[29]
Miss Ingram olhou-a com ar de deboche e exclamou:
– Olhem! Que linda bonequinha!
Lady Lynn observou:
– Deve ser a protegida de Mr. Rochester... A pequena menina
francesa de quem ele estava falando.
Mrs. Dent pegou bondosamente a mão dela e deu-lhe um beijo. Amy e Louisa Eshton exclamaram ao mesmo tempo:
– Que amor de criança!
E, então, levaram-na para o sofá, onde ela agora estava sentada,
refestelada no meio delas, falando alternadamente em francês e inglês
estropiado. Absorvia a atenção não só das jovens damas, como também de
Mrs. Eshton e Lady Lynn, e estava sendo muito mimada, para sua enorme
felicidade.
Por fim trouxeram o café, e os cavalheiros foram chamados. Eu
estava sentada na sombra, se é que havia alguma sombra naquele salão
iluminado. A cortina da janela me escondia parcialmente. O arco se abriu
novamente e eles entraram. A aparência coletiva dos cavalheiros era tão
imponente quanto a das damas. Estavam todos de preto, a maioria era alta
e alguns eram jovens. Henry e Frederick Lynn eram arrojados
galanteadores. O Coronel Dent era um belo homem, do tipo militar. Mr.
Eshton, o magistrado da região, tinha a aparência de um cavalheiro:
cabelos brancos, bigode e sobrancelhas ainda escuros, que lhe davam uma
aparência de “père noble de theatre” – pai nobre de teatro. Lord Ingram era
muito alto, como as irmãs. E, como elas, também muito bonito. Mas tinha
o mesmo olhar apático e indiferente de Mary. Parecia ter mais
comprimento de pernas do que vigor ou vivacidade de espírito.
E onde estava Mr. Rochester?
Ele chegou, afinal. Embora eu não estivesse olhando para a
arcada, senti quando ele entrou. Tentei concentrar minha atenção nas
agulhas de tricô e nas malhas da bolsa que tecia... Quis pensar apenas no
trabalho que tinha nas mãos, ver apenas as contas prateadas e os fios de
seda que estavam no meu colo. Apesar disso, vi distintamente sua figura, e
não pude evitar de pensar na última vez que o vira. Fora logo após haverlhe prestado o que ele chamou de serviço essencial, quando ele, segurando
minhas mãos e olhando para o meu rosto, observou-me com olhos que
revelavam um coração cheio e ansioso para transbordar numa emoção que
me envolvia. Como estive próxima dele naquele momento! O que ocorrera
desde então, para mudar a posição dele e a minha? Como estávamos
distantes e estranhos agora! Tão estranhos que nem sequer esperei que viesse falar comigo. Não me admirei quando ele, sem me olhar, sentou-se
no outro lado da sala e começou a conversar com algumas das damas.
Logo que percebi que a atenção dele estava concentrada nas
senhoras e que podia contemplá-lo sem ser vista, meus olhos dirigiram-se
involuntariamente para o seu rosto. Não podia controlá-los, de qualquer
forma eles se ergueriam e se fixariam nele. Olhei, e senti profundo prazer
em olhar – um prazer precioso, apesar de pungente. Ouro puro, ainda que
misturado a uma ponta afiada de agonia. Um prazer como aquele que sente
o peregrino sedento, quando descobre que o poço até o qual rastejou está
envenenado, e mesmo assim bebe algumas gotas.
Mais verdadeiro ainda é o ditado que diz que “a beleza está nos
olhos de quem vê”. Aquele rosto do meu patrão – a face morena e pálida, a
fronte quadrada e maciça, as sobrancelhas cerradas, os olhos profundos, as
feições marcantes, o queixo firme e cruel, tudo energia, decisão, vontade –
não eram traços bonitos de acordo com o gosto comum. Mas para mim
pareciam mais do que belos. Tinham um interesse e uma influência que
me dominavam, que arrebatavam de mim meus próprios sentimentos e os
colocava sob o poder dele. Não pretendia amá-lo. O leitor sabe que
trabalhei duro para extirpar da minha alma os germes desse amor que ali
se haviam instalado. E agora, quando pela primeira vez lancei os olhos
sobre ele, esses sentimentos voltaram, mais firmes e fortes! Ele ganhou o
meu amor sem sequer me olhar.
Comparei-o com os seus hóspedes. O que era a galante graça dos
Lynns, a lânguida elegância de Lord Ingram – e até a distinção militar do
Coronel Dent – comparada ao seu olhar de seiva nativa e genuína força?
Não me despertavam simpatia, nem pela aparência nem pela expressão.
Mesmo assim imaginava que a maioria das pessoas poderia achá-los
atraentes, bonitos, imponentes – e que considerariam Mr. Rochester um
homem de traços rudes e olhar melancólico. Eu os vi sorrir e dar risadas...
e isso não era nada. A luz das velas tinha mais alma do que os seus
sorrisos. As badaladas do sino mais significado do que as suas risadas. Vi
Mr. Rochester sorrir. Suas feições sérias se abrandaram. Seus olhos
tornaram-se brilhantes e gentis, e a sua luz aguda e doce. Naquele
momento estava conversando com Louisa e Amy Eshton. Admirei-me ao
ver a calma com que receberam aquele olhar que me parecia tão penetrante. Esperava que baixassem os olhos e corassem ante aquele olhar.
Fiquei contente ao perceber que ficavam impassíveis.
“Ele não é para elas o que é para mim,” pensei “não é da sua
espécie, e sim da minha. Estou convencida disso, sinto-me ligada a ele,
entendo a linguagem do seu rosto e dos seus gestos. Embora a situação
social e a riqueza nos afastem profundamente, tenho alguma coisa no
coração e na mente, no sangue e nos nervos, que me liga espiritualmente a
ele. E eu que disse, dias atrás, que não tinha nada a ver com ele a não ser
receber das suas mãos o meu salário! E eu que proibi a mim mesma de
pensar nele de outra forma que não fosse como patrão! Que atentado
contra a natureza! Todos os meus sentimentos bons, verdadeiros e
vigorosos dirigem-se impulsivamente para ele. Sei que devo esconder
meus sentimentos. Devo sufocar a esperança, lembrar-me que ele não pode
ligar muito para mim. Pois quando digo que somos da mesma espécie, não
quero dizer que tenho a sua força de influência, nem seu poder de atração.
Quero dizer apenas que tenho certos gostos e sentimentos em comum com
ele. Devo então repetir, continuamente, que estamos separados para todo o
sempre... Ainda assim, enquanto me restar vida e alento, vou amá-lo.”
O café foi servido. As damas, com a chegada dos cavalheiros,
tornaram-se vivas e divertidas. A conversa fluía alegre e jovial. O Coronel
Dent e Mr. Eshton discutiam política, enquanto as esposas ouviam. As
duas orgulhosas matronas, Lady Lynn e Lady Ingram, confabulavam. Sir
George – a quem, por acaso, esqueci de descrever – era um cavalheiro do
campo, bastante robusto e saudável. Estava de pé junto ao sofá, com a
xícara de café na mão, e ocasionalmente fazia algum comentário. Mr.
Frederick Lynn sentava-se ao lado de Mary Ingram, e mostrava a ela as
gravuras de um esplêndido álbum Ela olhava, sorria de vez em quando,
mas aparentemente falava pouco. O alto e fleumático Lord Ingram
debruçava-se, de braços cruzados, no espaldar da cadeira da pequena e
viva Amy Eshton. Ela levantava o olhar para ele e tagarelava como uma
cambaxirra. Gostava mais dele do que de Mr. Rochester. Henry Lynn
dividia uma otomana com Adele, aos pés de Louisa. Tentava falar em
francês com a menina, e Louisa ria dos seus erros. Quem seria a
companhia de Blanche Ingram? Ela estava sentada numa mesa, inclinada resolveu não esperar mais: ela mesma escolheu seu par.
Mr. Rochester, tendo deixado as Eshtons, parara junto à lareira,
tão solitário quanto estava na mesa. Miss Ingram parou em frente a ele,
posicionou-se no lado oposto do consolo da lareira, e perguntou-lhe:
– Mr. Rochester, acho que não gosta muito de crianças...
– Não gosto mesmo, não.
– Então, o que o levou a tomar conta de uma bonequinha como
aquela? – e apontou para Adele. – Onde foi que a pegou?
– Eu não a peguei, ela foi deixada em minhas mãos.
– Devia tê-la mandado para o colégio.
– Não pude me permitir isso ainda: colégios são muito caros.
– Mas suponho que contratou uma governanta. Vi uma pessoa
com ela ainda há pouco... Será que já foi? Oh, não! Ainda está lá, atrás da
cortina. O senhor lhe paga um salário, naturalmente. Acho que isso é tão
caro quanto o colégio, até mais, pois ainda tem que manter as duas.
Eu temia – ou devo dizer que esperava? – que a alusão feita a
mim fizesse Mr. Rochester olhar para o meu lado. E, involuntariamente,
mergulhei ainda mais na sombra. Mas ele não olhou.
– Nunca pensei no assunto – disse ele, indiferente, olhando direto
para a frente.
– Não, os homens nunca pensam em economia e bom senso.
Devia ouvir o que a mamãe diz a respeito de governantas. Mary e eu
tivemos, pelo menos, uma dúzia delas. A metade era detestável e o resto
era ridículo. E todas eram um pesadelo... Não é verdade, mamãe?
– Perguntou alguma coisa, minha filha?
A jovem dama assim chamada, como propriedade especial da
matriarca, repetiu a pergunta com uma explicação.
– Minha querida! Não me fale em governantas, só a palavra já me
deixa nervosa. Sofri um martírio com sua incompetência e caprichos.
Graças a Deus, agora estou livre delas. Mrs. Dent, então, inclinou-se para a piedosa senhora e sussurrou
algo em seu ouvido. Eu imagino, pela resposta que deu, que fora lembrada
de que uma representante dessa raça amaldiçoada estava presente.
– Tant pis!... Tanto pior! – exclamou a digníssima dama – Espero
que faça bom proveito!
Depois disse num tom mais baixo, mas alto o suficiente para que
eu ouvisse.
– Eu a vi. Sou boa fisionomista: vi no rosto dela todos os defeitos
da sua classe.
– Quais são eles, madame? – inquiriu Mr. Rochester, em voz alta.
– Vou dizer-lhe em particular – replicou a dama com prodigiosa
importância, sacudindo o turbante três vezes.
– Mas a minha curiosidade pode perder o apetite, precisa de
alimento agora.
– Pergunte a Blanche, ela está mais perto do senhor do que eu.
– Oh, não o remeta a mim, mamãe! Tenho apenas uma palavra a
dizer sobre esse bando todo. São um aborrecimento. Não que eu tenha
sofrido muito nas mãos delas. Tive o cuidado de inverter os papéis.
Quantos truques Theodore e eu costumávamos aplicar nas nossas Miss
Wilsons ou Miss Greys ou Madame Jouberts! Mary era boba demais para
pensar em alguma trama espirituosa. As mais engraçadas eram com
Madame Joubert. Miss Wilson era uma pobre coisinha tão doente,
lacrimosa e sem espírito, que não valia a pena tripudiar sobre ela. E Miss
Grey era grosseira e insensível, nenhum golpe a atingia. Mas a coitada da
Madame Joubert!... Ainda a vejo nas suas explosões de raiva, quando nós a
levávamos ao extremo – derramando nosso chá, esmigalhando nosso pão
com manteiga, jogando nossos livros para o alto, e fazendo um tumulto
com as réguas, as carteiras, os atiçadores e o guarda-fogo da lareira.
Theodore, você se lembra daqueles dias felizes?
– Ah, com certeza que sim – falou lentamente Lord Ingram. – E a
pobre coitada da velha costumava gritar: “Vocês, suas crianças
perversas”... E então nós lhe passávamos um sermão pela sua pretensão de querer ensinar crianças tão inteligentes quanto nós – ignorante do jeito que
ela era.
– É verdade. E você se lembra, Tedo, que eu o ajudava a seguir
(ou perseguir) o seu preceptor, aquele Mr. Vining de cara-de-coalhada? O
padre fracassado, como o chamávamos. Ele e Miss Wilson tomaram a
liberdade de se apaixonar um pelo outro, ou pelo menos foi o que Tedo e
eu pensamos. Surpreendemos vários olhares ternos e suspiros, que
interpretamos como sinais da “belle passion” – a bela paixão. Prometi que
todo mundo gozaria da nossa descoberta. Usamos isso como motivo para
livrar a nossa casa daqueles dois estorvos. A querida mamãe, assim que
desconfiou do negócio, viu que havia algo de imoral no caso. Não foi
assim, senhora minha mãe?
– Certamente, meu tesouro. E tinha toda a razão. Acredite em
mim: há milhares de motivos para que não se tolerem ligações entre
governantas e preceptores numa casa de família, nem por um momento.
Primeiro...
– Ah, querida mamãe! Poupe-nos da citação! Au reste – de resto –
todos nós as conhecemos. Mau exemplo para a inocência das crianças.
Distrações e consequente negligência no dever, por parte dos apaixonados.
Pacto de confiança entre os dois. Segredos acompanhados de insolência.
Rebelião e confusão geral. Estou certa, Baronesa Ingram, de Ingram Park?
– Sim, meu lírio! Está certa, como sempre.
– Então não há nada mais a ser dito. Mudemos de assunto.
Amy Eshton, não ouvindo ou não tendo prestado atenção no que
fora dito, aparteou com sua voz suave e infantil:
– Louisa e eu também costumávamos caçoar da nossa governanta.
Mas ela era uma pessoa tão boa, que suportava tudo: nada a incomodava.
Nunca ficava aborrecida conosco, não é Louisa?
– Não, nunca. Podíamos fazer o que quiséssemos. Saquear sua
escrivaninha, mexer na sua caixa de costura, virar suas gavetas no chão.
Ela era tão boa, nos dava tudo que pedíamos.
– Suponho – disse Miss Ingram, curvando o lábio sarcasticamente
– que agora temos um resumo das memórias de todas as governantas do mundo. Podemos evitar essa punição. Novamente sugiro a introdução de
um novo tópico. Mr. Rochester, apoia a minha moção?
– Senhorita, eu a apoio nesse ponto e em qualquer outro.
– Então cabe-me o ônus de levá-lo adiante. Signior Eduardo, está
disposto a usar sua voz?
– Donna Bianca, se a senhora ordena, assim seja.
– Então, signior, conforme o meu desejo soberano, ordeno-lhe
que prepare seus pulmões e outros órgãos vocais para o meu real serviço.
– Quem não quer ser o Rizzio[30] de uma Mary tão divina? os cachos enquanto se dirigia ao piano. – Na minha opinião, aquele
trapaceiro do David era um tipo muito insípido. Gosto mais do moreno
Bothwell[31]. Para mim, um homem não é nada sem uma pitada de
demônio. A história pode dizer o que quiser de James Hepburn, mas eu
tenho a ideia de que ele era o tipo do heroi bandido, orgulhoso e feroz, a
quem eu consentiria em premiar com a minha mão.
– Ouviram, cavalheiros? Qual de vós se parece mais com
Bothwell? – exclamou Mr. Rochester.
– Eu diria que é o senhor mesmo... – respondeu o Coronel Dent.
– Muito grato pela honra, senhor – foi a resposta.
Miss Ingram, que agora se sentara ao piano com uma graça
arrogante, espalhando os vestidos à volta qual uma rainha, começou um
brilhante prelúdio. Enquanto isso, falava. Estava de veneta naquela noite.
Suas palavras e seus movimentos pareciam calculados para suscitar não
apenas admiração, mas também pasmo na audiência. Era evidente que ela
estava inclinada a assombrá-los com algo muito arrojado e audacioso.
– Oh! Estou tão enjoada dos jovens de hoje! – exclamou ela,
falando sem parar enquanto estava ao piano. – Pobres fracotes, sem
coragem de dar um passo além dos portões do jardim do papai. Nem de ir
mais longe sem a permissão e a proteção da mamãe! Tão absorvidos em
cuidar da beleza do rosto, das mãos brancas e dos delicados pés, como se
os homens tivessem alguma coisa a ver com beleza! Como se a formosura não fosse uma prerrogativa das mulheres, sua legítima herança, seu
especial apanágio! Admito que uma mulher feia seja uma mancha na bela
face da criação. Mas, quanto aos cavalheiros, basta que se dediquem a
possuir força e valor. Seu lema deve ser: “Caçar, atirar e lutar: o resto não
vale um piparote”. Se eu fosse um homem, esta seria a minha divisa.
– Quando me casar – continuou ela, após uma pausa que ninguém
interrompeu – estou resolvida a não permitir que meu marido seja um
rival. Ele deve ser uma moldura para mim. Não vou aceitar competição
pelo trono. Exigirei admiração total. Sua devoção não poderá ser dividida
entre mim e a imagem que ele vê no seu espelho. Mr. Rochester, cante um
pouco, vou tocar para o senhor.
– Obedeço-a cegamente – foi a resposta.
– Vou tocar uma canção de corsários. Sabe como adoro os
corsários, portanto, cante-a com espírito.
– Uma ordem dos lábios de Miss Ingram poria espírito até numa
caneca de leite ou de água.
– Tome cuidado, então. Se não me agradar, vou envergonhá-lo
mostrando como tais canções devem ser cantadas.
– Mas isso é premiar a incompetência! Assim, farei o possível
para fracassar.
– Gardez-vous en bien! – Tenha cuidado! – Se errar de propósito,
vou planejar uma punição de acordo.
– Miss Ingram deve ser clemente, pois está em seu poder infligir
um castigo além da resistência humana.
– Ah! Explique-se! – ordenou a dama.
– Perdoe-me, senhora, não há necessidade de explicação. Sua fina
inteligência deve informá-la que apenas o franzir de uma das suas
sobrancelhas seria suficiente para substituir a pena capital.
– Cante! – disse ela.
E recomeçando a tocar, começou um acompanhamento de estilo
vivaz. “Chegou a minha hora de escapar” pensei. Mas os sons que
encheram o ar me prenderam. Mrs. Fairfax dissera que Mr. Rochester
possuía uma bela voz. Ele possuía, de fato. Era uma voz de baixo,
melodiosa e cheia, na qual colocava seus próprios sentimentos e sua força,
traçando um caminho que levava do ouvido ao coração. Despertava
estranhas sensações. Esperei até que terminasse a última nota profunda e
vibrante. Até que o rumor das conversas, parado por um momento,
retomasse seu curso. Então deixei meu cantinho abrigado e comecei a
retirada pela porta lateral, que felizmente ficava perto. Ali, uma passagem
estreita levava ao saguão. Ao cruzá-lo, percebi que minha botina estava
desamarrada. Parei para atá-la, ajoelhando-me no pequeno tapete aos pés
da escada. Ouvi a porta da sala de jantar se abrir: um cavalheiro saiu.
Levantei-me apressada e fiquei frente a frente com ele: era Mr. Rochester.
– Como vai? – ele perguntou.
– Estou muito bem, senhor.
– Porque não veio falar comigo no salão?
Pensei que podia fazer-lhe a mesma pergunta, mas não devia
tomar essa liberdade. Respondi:
– Não quis incomodá-lo, pois vi que estava ocupado, senhor.
– O que tem feito na minha ausência?
– Nada de especial. Ensinando Adele, como sempre.
– E ficando mais pálida do que era. Percebi no primeiro olhar.
Qual é o problema?
– Nenhum, senhor.
– Pegou algum resfriado naquela noite em que quase me afogou?
– Nem um pouco.
– Volte para o salão, você está desertando muito cedo.
– Estou cansada, senhor.
Ele me olhou por um momento.
– E está um pouco deprimida, também. O que aconteceu? Diga-me. – Nada... Não é nada, senhor. Não estou deprimida.
– Eu digo que está. Tão deprimida, que algumas palavras mais
vão acabar trazendo lágrimas aos seus olhos. Na verdade, aí estão elas,
brilhando e escorrendo. E uma gota escorreu dos seus cílios e caiu no
ladrilho. Se eu tivesse tempo, e não estivesse com um medo terrível do
falatório mesquinho de algum criado que nos visse, ia descobrir o que
significa tudo isso. Bem, esta noite está dispensada. Mas saiba que,
enquanto os meus convidados estiverem aqui, conto com você na sala de
visitas todas as noites. É o meu desejo, não esqueça. Agora vá, e mande
Sophie buscar Adele. Boa-noite, minha...
Ele parou, mordeu o lábio, e deixou-me bruscamente.

Nota: [25] Citação do conto “A Gipsey Party”, de Thomas Hood (1799/1845), poeta e humorista britânico.

[26] Em francês no original: “Estão trocando de roupa. Na casa da mamãe, quando havia muita gente eu os seguia a toda parte, ao
salão e aos seus quartos. Muitas vezes via as criadas pentearem e vestirem as damas e era muito divertido: aprende-se muito.”

[27] Em francês no original: “Claro que sim, senhorita. Faz cinco ou seis horas que não comemos nada.”

[28] Em francês no original: “Será que não posso pegar uma só dessas lindas flores, senhorita? Apenas para complementar o meu
traje?”

[29] Em francês no original: “Muito prazer, senhoras”
[30] David Rizzio (1533/1566) – cortesão italiano que tornou-se secretário particular da rainha Mary da Escócia e, segundo os
rumores, também seu amante.

[31] James Hepburn, 4º Conde de Bothwell (1534/1578), terceiro marido da rainha Mary da Escócia.

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