No coração da floresta, onde as oportunidades de emprego eram tão disputadas quanto o néctar das flores, uma abelha madura caminhava em direção à última cadeira, em meio aos zumbidos de ansiedade nas asas das concorrentes, jovens abelhinhas à procura de seu primeiro emprego. Talvez sua vasta experiência pudesse lhe favorecer, mas ao mesmo tempo, ser depreciada pela idade mais avançada que os demais.Por pouco não se sentiu a figura materna em meio a tantos pirralhos, mas se surpreendeu ao chegar em seu assento e dar de cara com o concorrente do lado, na penúltima cadeira. Não era amarelo, não tinha listras e tampouco asas. Em vez disso, era marrom, magrelo, porém com abundante traseiro e com largas antenas.
- Que faz aqui? Você é uma formiga, não? - Questionou a Abelha.
- Uma formiga polinizadora e dominadora da arte de arquitetura. Tenho uma extensa lista de formigueiros que levantei com minhas próprias patas. Poderia facilmente levantar uma colmeia. Faço tudo que uma abelha poderia fazer - a Formiga respondeu, sem qualquer pudor.
- E com essa ideia você decidiu migrar de área? Não acho que a Mãe Natureza tenha o mesmo ponto de vista - a Abelha debochou.
- Repito: sou tão experiente quanto qualquer uma dessas crianças à nossa volta.
- Talvez em alguma coisa concordemos. Mas com tanta experiência, por que não procurou algo em seu nicho? - a Abelha indagou.
- Por que minhas costas estão tão frágeis quanto um fio de algodão. - Justificou a Formiga - Você passa três estações servindo de burro de carga, juntando todo tipo de mantimento para o inverno, sendo que não te retornam nem um terço do que contribuiu. Essa é minha situação. Escalo uma parede inteira carregando uma folha de samambaia, para, no fim, receber apenas um mísero talo!
- Dureza. - A Abelha reagiu ao relato.
- Dureza mesmo. - Concordou - Enquanto isso, a Formiga Rainha goza de múltiplos benefícios, sendo que a única coisa que leva nas costas são os processos trabalhistas! Veja só, ser uma formiga é ter que se revezar entre ser catador de folhas; alpinista, para escalar aquelas paredes; arquiteto, para construir os formigueiros; saber táticas de invasão aos domicílios dos humanos; e, de calha, ainda fazemos bico de funerária, tendo que velar baratas mortas, ainda por cima arriscando nossas vidas, pois sequer nos dão trajes de proteção contra o inseticida!
- Jesus! Que condições são essas?! - A Abelha intrigou-se.
- Pois é. E o que mais me revolta é o quanto nosso trabalho é desvalorizado. Pois acredite, aquela Cigarra maldita, que nunca carregou um graveto sequer, simplesmente virou empreendedora do ramo de marketing. Tocando música em seu violino e fazendo uma dancinha aleatória, ela consegue publicidade pra Formiga Rainha, que paga dez vezes mais para ela do que para nós, que fazemos mão de obra!
- Realmente essa situação aí é bem complicada. Mas deixa eu avisar, aqui no reino das abelhas as coisas não são muito diferentes. - A Abelha alertou - Quero dizer, nossa meta é produzir entre 30 e 40 quilos de mel por ano. Mas se você acha que isso é repartido de maneira igualitária, está enganado. Damos literalmente a vida para produzir míseros gramas, arriscando a vida, pois nossa única defesa está em nossos ferrões, que ao mesmo tempo podem nos levar à morte. Para ser uma abelha, você precisa ser arquiteta, química, cozinheira e jardineira. Meu currículo é impecável. Minhas patas já se contorcem de tanta cera que bordei. De quantas colmeias que levantei. De quantas flores polinizei e quanto mel vomitei. E a Abelha Rainha? Aquela lá só vive pra mandar e viver na promiscuidade com aqueles zangões folgados! E nós, operárias, pegamos todo trabalho pesado e ainda temos que aturar aquelas vespas terroristas destruindo nossas colmeias! A única proteção que nos deram até hoje foi a vacina contra o agrotóxico, mas isso por pura burocracia, pois bem que essa realeza gostaria que sofrêssemos alguma mutação e nos surgisse um segundo par de asas, assim iriam dobrar nosso trabalho e reduzir o vale transporte, já que visitar mil flores por dia exige um grande percurso.
- Uau. Parece que estamos na mesma corda bamba. Não importa para onde vamos, sempre seremos vistos como uma mera ferramenta de trabalho e não há para onde fugir, apenas aceitar.
- Acho que chegou a sua vez. Boa sorte nessa entrevista. - A Abelha desejou.
Os dois se despediram. Enquanto a Formiga entrava na sala de entrevista, a velha Abelhas apenas observava as jovens abelhinhas ansiosas, enxergando ali seu passado, e vendo em si, o futuro delas.
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O Cérebro Espelhado
RandomAqui lhes apresento uma antologia de one shots pautados em reflexões e abordagens sociais.