Capítulo único

177 9 1
                                    


A primeira vida foi a mais tranquila, e a mais inocente. Vitório nasceu exatamente um mês depois de Olívia, na casa imediatamente ao lado. Eram casas simples, numa remota vila de pescadores - feliz, farta e pacífica. Olívia era filha única, Vitório era cheio de irmãos. Criaram-se juntos, correndo na areia, brincando ao relento. Olívia foi quem ensinou Vitório a usar uma faca para abrir mexilhões, e foi ele quem ensinou a ela a dar o nó para amarrar os barcos no pequeno píer. Dançaram juntos em quase todos os luais que participaram (menos o ano em que Olívia não foi porque estava menstruando pela primeira vez), se abrigam juntos em todas as tempestades (Olívia morria de medo da ventania, então Vitório e os irmãos montavam uma fortaleza de almofadas para distraí-la) e viviam tão juntos que a comunidade já não via um sem o outro. Um foi o primeiro beijo do outro: de brincadeira, aos 11 anos, e o de verdade, aos 15. Não foi surpresa para ninguém quando, aos 18, eles avisaram às famílias que iriam construir uma casa juntos, oficializando o que seria a felicidade de uma vida inteira. Enquanto construíam aos poucos uma casa igual às outras em forma, especial em amor, Vitório pescava de manhã e Olívia cerzia suas redes de pesca e de descanso. De noite, ele separava as frutas que suas irmãs colhiam, e escondia as mais suculentas para Olívia; ela plantava mudas fortes na encosta de um morro e dava um jeito de espiar lá do alto para ver se ele chegava. Ela esperava o retorno dele à praia e cuidava para não machucá-lo quando beijava sua pele torrada do Sol. Numa noite de lua cheia, saíram para mergulhar e dormiram na praia juntos, porque o clima permitia, porque estavam felizes, e porque nada de errado podia acontecer para atrapalhar o caminho de tranquilidade que estava escrito para aquelas criaturas plenas, amorosas e dedicadas.

Até que, depois de uma frente fria rigorosa, a mãe e o pai de Olívia adoeceram, de uma doença que parecia não existir cura nem remédio. De trabalhadora e namorada dedicada, Olívia se voltou completamente para o cuidado com os pais, agonizando junto com os gemidos de dor que ecoavam pela vila. Chás e rezas e todo o carinho do mundo não causaram mudanças no estado dos pais de Olívia, e nem a morte parecia querê-los: não parecia haver alívio que pudesse chegar àquela família. O sorriso radiante de Olívia foi se apagando, seus braços antes fortes foram se fragilizando, já que toda a comida da casa era direcionada aos enfermos. Vitório pescava para duas famílias; passava, às vezes, noites viradas no barco para que nada faltasse às suas irmãs e à sua mulher.

Em poucos meses, a felicidade de antes foi substituída por preocupação e tensão. Olívia parecia adoecer junto com os pais. Numa noite sem lua, ela ajoelhou-se na areia e pediu para que o mar invadisse tudo e levasse a família em sofrimento, porque nem ela, nem os pais aguentavam mais a rotina fadada à tristeza interminável.

Na manhã seguinte, o mar não veio, mas chegou na areia um barco grande com homens igualmente grandes que vinham de longe. Os homens da vila se mobilizaram, mas Olivia foi a primeira a chegar para ver. Vitório estava no mar já havia dois dias, e ela achou que fosse ele quem chegava. Um dos homens grandes se encantou por ela e a seguiu por um dia inteiro. O homem testemunhou seu sofrimento, e prometeu que outro dos homens grandes poderia ajudá-los. Esse outro homem carregava uma bolsa com muitos vidros, e deu um pouco de cada coisa à mãe de Olívia. Passada uma noite, a mãe melhorou tanto que saiu da cama sem ajuda. Olívia correu de volta ao homem, pedindo que ajudasse o pai também. O homem que veio de longe, que disse que se chamava Raul, disse que poderia cuidar deles, se ela fosse embora com ele. Vitório chegou naquela noite, e ela o esperava na praia, como fazia antes de noites boas virarem noites ruins. Ele a encontrou e, antes de pisar na areia, sabia que algo nela tinha mudado.

Ela contou o que aconteceu e, entre beijos salgados de mar e lágrimas, Olívia disse que iria embora. Vitório se espantou tanto que não conseguiu reagir, parecia que estava ainda dentro de um de seus pesadelos. Conforme a noite avançava, ele foi assimilando aos poucos o que acontecia, sem conseguir dizer nada. Olívia o beijou com muita tristeza e sofrimento, e o amou naquela noite sem fazer barulho. O dia nasceu de novo, e Vitório acordou sozinho na praia. Ali ele soube que não era pesadelo algum. Ao voltar para a vila, a casa de Olívia estava vazia, e no horizonte o enorme barco já estava no mar. Sentindo-se traído e humilhado, Vitório gritou do pequeno píer de madeira as piores ofensas que Olívia já tinha ouvido na vida. Ela então pôs-se a chorar em silêncio. Seu coração encheu-se de ressentimento: ela achou que ele entenderia suas razões. Achou que ele, que a amava, entenderia a decisão.

Você de novo?Onde histórias criam vida. Descubra agora