O banco estava todo pingado, como que orvalhado, mas era das gotas da tarde, que caíram parcas e espaçadamente, agora cessadas. Se sentou mesmo assim. Sentiu a frieza das gotas e a bermuda molhando. Os bancos ficavam sobre concreto e espalhados a cada vários metros, a praça tinha alguns canteiros de terra ocupados por alguma vegetação. Era domingo à tarde, por causa da chuva e da ligeira queda da temperatura a praça ainda estava pouco ocupada, alguns poucos moradores locais já passeavam com seus cachorros ou caminhavam, precisamente como na sua lembrança de poucos meses atrás, de muitas semanas atrás.
Não eram lembranças procuradas, evocadas voluntariamente, prova disso é que ele não estava na mesma praça das lembranças, nem mesmo perto, e não gostaria mesmo de estar, porque aí é que seria massacrado pelo peso das lembranças opressivas. Esta praça era próxima da sua casa, e a das lembranças, elas tristes e ainda secando, era perto do centro da cidade. Ele não buscava, então, naturalmente, reavivar estas chagas insistentes, na verdade, antes mesmo de se sentar ele já se lembrava da outra praça com o banco molhado pós chuva e os dois sentados sobre sacolas que ele tirou da mochila e rasgou para forrar dois pedaços do banco, mas achou que ia conseguir espairecer, queria poder fazer isso, quis se testar. Não se martirizou mas não pôde controlar as lembranças, que na verdade não pareciam tão frescas quanto as feridas ardentes, ele conseguia lembrar menos, mas não conseguia sentir menos.
Fixou os olhos num canteiro de terra, encarou o tronco das árvores, suas folhagens, passou o dedo em gotas frias do banco, se inclinou para frente entrelaçando as mãos, do outro lado da praça passaram dois meninos juntos, pareciam amigos, achou um deles particularmente abençoado com graça, graça não só para seu gosto de rosto, mas uma graça tímida, serena, uma de suas preferidas. Os dois meninos, para além das árvores, dos canteiros, do ar, do outro lado, não o notaram, e se iam rindo. Que lembranças latejantes recentes teriam?
Antes o perturbava mais, nas primeiras semanas, e foram várias, mas ainda doía um pouco ver casais graciosos, pensava a cada casal "vocês não viram o que eu perdi", menosprezando-os mentalmente, rebaixando a qualidade de seus afetos e de suas uniões diante do supremo especial que foi sua tão curta relação. Agora o que pensava mais deles era que essa felicidade de casais era falsa, ilusão, que era melhor ser independente do coração, e que uma hora iam acabar esfarrapados, desprezando um ao outro, vendo que o especial fora sempre qualquer coisa exaltada. Mas sabia que fraquejaria, pelo menos ainda, dentro desses poucos meses e muitas semanas, fraquejaria se recebesse do ser tão especial como nenhum outro antigo afeto um "oi, quer conversar?", mas não gostaria de amolecer, de se tremer no peito.
Não mais se tremer era questão de tempo como tudo é, um tempo muito mais longo do que a passagem já inalcançável dos meninos do outro lado da praça. Foram-se há vários minutos os meninos, seus rostos imemoráveis, tão diferentes quanto qualquer outro menino com qualquer graça que fosse que passasse por ali e em todo lugar do mundo.
Queria pendurar as lembranças, que causavam as emoções, pendurar elas nos troncos das árvores, como os pares de tênis descartados nos fios elétricos dos postes. Ou melhor, queria que as lembranças fossem biodegradáveis, ou melhor ainda que fossem adubo e pudessem ser jogadas como cinzas naqueles canteiros ou em qualquer quadrado de terra que via pelas ruas, e assim fizessem crescer algo, algo bom, útil, que trouxesse qualquer coisa de essencial pra cidade. Que pudessem ser adubo de crescer coisa boa. De crescer coisa boa. Mas morreu coisa boa enquanto ainda broto pela bobeira de passos desastrados.
Mas não queria deixar toda essa lembrança largada, esquecida de vez, queria e achava bom que restasse aquele tanto de lembrança natural e inexorável, quando já está seca, apaziguada, opaca, quando aparece pontual, ou de repente e que logo hiberna de novo, ou quando outra pessoa a faz ser evocada e ela não machuca mais, apenas, no máximo, faz tremer algo dentro, mais pela nostalgia. Queria que o tempo voasse só para essas lembranças, porque ainda latejavam.
Olhou ao redor, para quase tudo, menos para as pessoas, suspirou fundo e soltou forte e se levantou. Continuou tentando pensar em qualquer outra coisa, ainda pensava que tinha perdido uma grande coisa, mas também pensou no trabalho, ia trabalhar no dia seguinte, ia trabalhar tentando não se lembrar tanto.
Tomou rumo pra casa, observando paisagens e detalhes molhados num domingo atípico para si, querendo ter tempo pra ver tanta coisa pra ver na cidade. Enquanto o tempo passa e muda quase tudo, irremediavelmente.