único.

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porque me perdoe, mas eu realmente te odiava. suas historietas desarticuladas, porém bem narradas, não passavam de um suplício disfarçado que eu consumia apenas para fugir do tédio, naquele quarto repleto de um fedor agridoce de mofo e perfume francês barato. enquanto você desfiava palavras entre dentes trêmulos, a língua movendo-se desajeitada numa coreografia grotesca, a única coisa que me distraía era a obviedade da sua vulnerabilidade — a garganta branca, quase convidativa, implorando por um traço de carmesim, o vermelho brutal que sempre me resgatava dos meus devaneios homicidas. então você forçava um pranto seco, teatral, afirmando que aquela velha história sempre te emocionava.

perscrutar-te não era o bastante. eu ansiava devorar-te — não metaforicamente, mas de maneira literal, visceral, arrancar-te a carne com os dentes, como se teu rosto fosse um bolo açucarado, com cobertura de chantilly, rosa, macio, quase pueril. delicioso. odiava tua postura, tua presença, mas não podia negar o desejo de te consumir por completo, mastigar-te até meus próprios dentes rangerem de dor. eras, para mim, um incômodo, uma aberração familiar cujo motivo do ódio me escapa. seria o conjunto de tuas mentiras deslavadas, teu colar de pérolas tão vulgar, o odor insistente de teu perfume patético, ou talvez teu gosto indecoroso nas vestes. não importa. ainda assim, te desprezo e jamais acreditarei numa única palavra que profiras.

destruir-te os olhos, arrancá-los das órbitas e depositá-los, em frascos de vidro, para observar sua decomposição lenta me daria um gozo silencioso. mas, se esse ato me trouxesse satisfação, seria uma falácia afirmar que te odeio, pois findar tua existência poria fim à parte de mim que se deleita em tua miséria. ironicamente, tua voz — insuportável, crua, ecoando contra meus ouvidos — tornou-se a partícula de felicidade disfarçada que, sem perceber, me ancorava em meio à poeira acumulada das janelas sujas. mentiria se dissesse que gosto de ti. mas a mentira maior seria declarar um ódio que transcende o simples, o óbvio.

porque, no fim, sou a maior impostora de mim mesma. talvez tenha te criado, em meio ao caos interno, apenas para desviar o peso monumental de odiar a mim própria.

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