CAPÍTULO 06 - VÍNCULO INQUEBRÁVEL

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— Mãe, cometi um erro. — Digo. Ela permanece imóvel, seus batimentos cardíacos marcados pelo ritmo constante do monitor.

O cheiro anticonceptivo se espalha no ambiente silencioso. Eu sabia que ela não ia responder ou me dizer o que fazer com minha vida, mas tinha certeza que mesmo naquele estado, ela podia me ouvir. Ela deve achar que sou uma filha idiota.

Faço uma pequena pausa depois de correr muito da faculdade até o hospital.

Sempre que algo novo e muito estranho acontecia, eu me sentava ao lado de sua cama e explodia em um turbilhão de sentimentos e desabafos. Era injusto para ela ter sempre que ouvir meus problemas enquanto eu não podia ouvir nada vindo dela. Porém, essa foi a única forma que encontrei de nos mantermos conectadas.

— Fui impulsiva. — Continuo e minha voz falha simplismente de relembrar.

Se tem algo que ainda não aprendi durante 21 anos foi como superar o passado que não podemos tornar diferente. Não superei o acidente da minha mãe causado pelo meu próprio pai e acho que a capacidade de superar problemas futuros também não vai acontecer.

Minha mãe era minha única amiga na infância. Tínhamos muito vizinhos na época, embora nenhum deles ousasse se aproximar da gente. Éramos como estranhos quando nos mudamos para a pequena casa ao lado da loja de discos. Por isso, vivíamos em silencio, alimentando nossa própria solidão. A gente sabia que quando o sol fosse embora e a escuridão tomasse conta dos céus, tudo mudaria.

Mamãe sempre tentou me proteger, me escondendo em qualquer lugar que meu tamanho permitia. Dentro do guarda-roupa ou do pequeno armário da cozinha que não tinha muitas panelas e nem alimentos estocados. Aquele espaço apertado era como uma segunda casa, um refúgio, onde eu passava muito tempo escondida.

Quando se tem 4 anos de idade não entendemos muita coisa, mas eu sabia que aqueles machucados que mamãe tinha em diversas partes do corpo não tinham surgido do nada. Meu pai gostava de machucá-la por puro prazer e maldade. A bebida o transformava em outra pessoa. Um demonio, que assombrava nossas almas todos os dias.

Aprendemos a sobreviver com aquilo. E o hábito nos tornou mais fortes. Às 22h era o horário que ele sempre chegava em casa. A gritaria começava um tempo depois.

— Eu disse que queria isso pronto quando eu chegasse. — Meu pai gritou e eu podia sentir a vibração de sua voz mesmo escondida dentro do guarda-roupa.

— Eu fiz… eu fiz o que você mandou. — Mamãe disse em um sussurro.

Com o tempo aprendemos a utilizar o tom de voz preferido do papai: não muito alto para que os vizinhos pudessem ouvir, nem muito baixo para ele não precisar perguntar outra vez.

Às 23h o ambiente se acalmava porque meu pai tinha finalmente apagado depois de um copo de leite batizado. Essa era nossa salvação, nossa maneira de sobreviver.

Certa noite uma luz finalmente pareceu iluminar nossos caminhos e mamãe disse:

— Precisamos ir embora!

Eu apenas sorri porque consegui imaginar um futuro melhor e brilhante. Um Futuro onde homens como o meu pai não existiam, onde nenhum deles pudessem chegar perto de nós. Mamãe e eu fizemos um plano. Iríamos embora quando ele tivesse saído para beber. Iamos pegar o carro e ir para bem longe, tão longe que ele jamais iria nos encontrar. Nossas malas estavam prontas e escondidas para que ele não encontrasse. Naquele dia eu iria sair da escola mais cedo para que pudéssemos ir embora com bastante antecedência.
Quando ele voltasse para casa já estaríamos muito longe.

E livres.

Contudo, quando vovó apareceu na escola naquele dia, presumi que nada tinha saído como o combinado. Um plano mal pensado por causa do desespero foi o nosso primeiro erro.

Ele tinha nos descoberto depois de voltar para casa muito mais cedo naquele dia e visto mamãe terminando de colocar suas roupas na mala.

Eu não visitei mais aquela casa depois do ocorrido, mas escutei vovó conversando com os policiais depois que passei a morar com ela. Eu não só conhecia o que tinha acontecido como podia ouvir e imaginar as cenas como se as manchas daquele dia estivessem impregnadas na minha alma.

Imaginei como mamãe deve ter gritado por socorro e todos se recusaram a ouvir porque não queriam se envolver com aquela família problemática. Isso me assombrou durante noites e mais noites.

Quando passei a morar com a vovó em outra cidade descobri uma realidade inesperada. A mulher que sempre vi como vítima das circunstâncias, também tinha sonhos e aspirações. Ela não tinha escolhido o sofrimento como pensei que tinha.

Minha mãe gostava de pintar quadros e me senti inundada de culpa quando vovó disse que ela havia parado quando soube que estava grávida. Isso fez minha mente borbulhar. Mamãe teria sido mais feliz se eu não tivesse nascido? Eu apaguei a luz de criatividade dela?

Vovó morava em uma casa em cima de uma livraria empoeira. De certa forma, estava sempre cheia de clientes e transbordava vida. Nós três teríamos sido felizes juntas. Sem papai.

E foi nos fundos da livraria, em um estúdio de pintura que mamãe havia abandonado que me conectei com sua alma artística. Ser artista foi uma forma de me redimir com ela, de me desculpar por ter nascido e feito ela se casar com um homem ruim. Era minha redenção.

Papai foi preso e eu nunca mais toquei no nome dele. Aquele era o fim de um capítulo sombrio da minha vida. Eu não queria mais ter nada a ver com aquele passado.

Vovó e eu íamos visitar mamãe todo dia no hospital. Era nosso ritual sagrado. Contávamos história no quarto para que mamãe pudesse escutar. Vovó acreditava que histórias alimentavam o espírito. Como uma criança com uma imaginação fértil, queria que o espírito da minha mãe estivesse bem nutrido. Essa foi a meneira que encontramos de manter ela viva em nossos corações.

Quando vovó morreu eu estava me formando no ensino médio. Passei a visitar mamãe sozinha desde então, mas nunca deixei de contar histórias. Embora minha vida estivesse um desastre depois da maldita ideia de se passar por Anne, acho que mamãe ainda assim gosta de escutar histórias ruins.

Os médicos disseram que mesmo que ela acorde algum dia, talvez sofra de algo chamado Amnésia retrograda. Uma espécie de condição onde se esquece boa parte das memórias devido a um evento traumático.

Ela seria como uma criança novamente, mas pelo menos não lembraria de tudo que passou. Talvez encontrasse a paz em uma nova realidade.

Uma Farsa De AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora