Tenho olhos, mas não o enxergo.

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Tudo começou em uma madrugada de minha adolescência. Acordei assustada, suando. Minha garganta estava seca, então peguei o copo d'água que sempre deixava na cômoda ao lado da minha cama. Após satisfazer minha sede, ergui meus olhos, e foi aí que o vi pela primeira vez. Uma criatura humanoide, esguia, desproporcional. De pé, seu pescoço se entortava no teto para caber no quarto. Seus braços eram longos, chegavam até o chão e ficavam largados ali. Eu congelei, e sem ao menos perceber, derrubei o copo na cama, molhando-a por completo. No mesmo instante, entrei debaixo das cobertas, buscando proteção. Meu corpo inteiro tremia, parte pelo frio do cobertor molhado, parte do medo. Até que, finalmente, dormi. Aquela noite seria a primeira de muitas.
Continuei vivendo normalmente por algumas semanas, algumas noites eu acordava de madrugada e o via, outras eu dormia, mas tinha certeza que ele esteve no quarto. Na terceira semana, contei o que estava acontecendo aos meus pais, que como sempre, foram compreensivos. Na quarta semana, eu já estava tomando remédios para tratar paralisia do sono e insonia. Mesmo assim, mesmo não acordando mais de madrugada, eu sabia que ele tinha ido até meu quarto, me assistido dormir, e simplesmente sumido.
O remédio funcionou por um mês. Eu soube que teria que tomar algo mais pesado enquanto voltava para casa da escola e, ao longe, eu o vi, me observando, paciente, imóvel, de dentro de uma casa. Conforme os meses se passaram ele se aproximou, mais e mais. Sempre silencioso, sempre quieto, sempre... olhando. Anos se passaram e eu continuei tomando remédios. Com o passar do tempo percebi que apenas eu o via. Todos que eu contava davam risada. Aqueles que ''acreditavam'' se afastavam. Pesquisei em fóruns na internet e achei algumas pessoas ao redor do mundo que haviam narrado algo parecido. Um artigo citava por um breve parágrafo que um homem na Inglaterra em 1976 havia relatado algo parecido, mas foi dado como insano e morto em uma briga de bar. Um homem na Rússia costurou os próprios olhos para não ver a criatura. Foi aí, que parei de pesquisar, estava me afetando mais que a própria criatura, que estava lá, mas distante, sempre distante.
Basicamente nada na minha vida mudou. Frequentava festas normalmente, arrumei um estágio, conheci pessoas, comecei relacionamentos que não duraram muito. Os cinco anos estudando na politécnica de São Paulo foram ótimos, tirando minha reprovação em cálculo — O que me custou um semestre a mais. Passei a frequentar um psicólogo, que me encaminhou para um psiquiatra. Mesmo que mentisse para mim mesma, aquilo me afetava, aquela coisa me afetava profundamente. Desenvolvi ansiedade.
Finalmente, minha formatura havia chego. Prestigiei meus colegas, vibrei por eles, chorei, até que chegou minha vez de subir no tablado. Minhas pernas tremiam, meu estômago parecia estar no chão, meu suor era frio. Subi ao palco, meu orientador me entregou meu diploma e eu o cumprimentei. Segui cumprimentando um por um daqueles professores que haviam sido parte essencial da minha vida naqueles anos. Quando finalmente parei para ser fotografada, meu coração despedaçou. A criatura estava lá. Me prestigiando também. Nunca esteve tão perto, nunca me perturbou tanto. Não aguentei, no momento que o fotografo tirou a foto, coloquei tudo que estava em meu estômago para fora.
A ansiedade se transformou em paranoia. Agora aquela coisa estava dentro de minha casa, dentro do meu quarto, no meu trabalho, nos meus momentos de lazer, nos meus momentos mais íntimos. Ele estava la. Meus únicos momentos sozinha era quando fechava os olhos. Nesses momentos eu estava finalmente a só, estava comigo mesma. Eu sabia que ele continuava la, mas se eu me concentrasse no escuro de meus olhos cerrados, estava sozinha.
Anos se passaram e a criatura chegou finalmente ao seu ''limite'', por meses reparei minuciosamente e não avançava igual antes. Ainda assim, dormia e acordava com aquilo me encarando. Eu não aguentava mais, era impossível ignorar sua presença, eu só não podia lidar mais com aquilo.
Tomei minha decisão. Subi no último andar do estacionamento de um supermercado regional. Claro que antes passei no comércio em si e comprei o vinho mais caro do mercado. Lá estava eu, encostada no muro que dava para um abismo. Apenas eu e a criatura. A encarei por alguns segundos e desviei o olhar, era impossível encará-la por muito tempo. Abri a garrafa com o abridor de garrafas que comprei alguns minutos antes e dei um longo gole. Era horrível, imediatamente cuspi.
"Horrível né?" Buscando a origem dessa pergunta, achei-a. "Os baratos são os melhores", sua risada me dava conforto. Olhei ao meu redor. Ele não estava mais lá...
Àquela altura da minha vida eu já havia vivido mais com a criatura do que sem ela. Era estranho finalmente estar sozinha, sem ser observada. A vida com o meu amor era boa. Economizamos, compramos nossa casa, adotamos dois gatinhos. Finalmente estava feliz. Pela primeira vez eu quis a companhia de alguém. Me sentia triste por estar sem ela. Essa tristeza me trazia alivio. Por garantia, permaneci indo aos psicólogo.
Estávamos morando juntas ha três anos quando um dos nossos gatos, Mendel, adoeceu e faleceu. Não demorou muito para que seu irmão, Sapato, o acompanhasse. O intervalo não durou um mês. Foi aí que ela me chamou para conversarmos.
Durante a conversa, ela me contou que desde que me conheceu, ela percebeu uma criatura a seguindo, começou de longe e foi se aproximando. Até que um dia viu a criatura e ela estava diferente, encarava um dos gatos. Encarava Mendel. Obviamente contei o que havia vivido até a conhecer, ambas desabamos, perdi as contas de quantas vezes pedi desculpas. Pelo menos tínhamos uma a outra, um apoio mútuo. Quando saí de seu abraço, a criatura tinha voltado a me encarar.
Ela dizia que a criatura também a olhava, então entendi que para mim a criatura me encarava, mas para ela, era diferente. Duas semanas após contarmos uma a outra o que estava acontecendo, ela adoeceu. O tempo passou e ela tomava cada vez mais remédios. Eventualmente, a depressão a levou. Novamente estava sozinha com a criatura.
Eu não podia mais continuar, eu tinha que fazer algo por ela, pelo meu grande amor. Decidi, fui até meu sofá, sentei-me e a encarei. Encarei a criatura enquanto pensava em todo o inferno que minha vida tinha sido. Encarei-a como se apenas ela existisse, como se eu a entendesse completamente. Até meus olhos arderem. Até eu desabar novamente em lágrimas. Finalmente, tomei coragem. "O que você quer?".
Pela primeira vez, a criatura mudou seu olhar. Ela... tentou se comunicar comigo. Sua expressão mudou. Mas não foi o suficiente. Aquilo não podia ser tudo que eu consegui em cinquenta anos. Eu não podia mais vê-la. Em um impulso, que eu tenho certeza que não podia controlar, levei minhas mãos até meus olhos e os arranquei de meu rosto.
Isso já faz quatro anos. Fui internada no sanatório Alex Bernina. Me senti aliviada, em paz. Estava sozinha comigo mesma, para sempre, em meu escuro particular. Porém, há aproximadamente três semanas eu venho tendo sonhos, sonhos com imagens perturbadoras . E eu o vejo. Perdi a noção do que é um pensamento e o que é a realidade. Ela está aqui, está dentro da minha cabeça. No meu escuro particular. Não posso fechar meus olhos para ignorá-lo, ele continua aqui. Sempre quieto. Sempre imóvel. Sempre ocioso.
Eu não tenho olhos, mas o enxergo.

Não tenho olhos, mas o enxergo.Onde histórias criam vida. Descubra agora