Trotes Epikos I: Um Estudo Inusitado

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HELENO

A rotina deles não se importava com a vida de privilégios que eu tive.

Carmela, a adorável senhora que calhava de ser a governanta lá de casa e que suportava minhas merdas mais do que minha mãe já fez, sempre dizia que um dia eu me veria longe dos privilégios da riqueza e que descobriria sobre o valor de ter dois braços e duas pernas que funcionavam. Disse ainda que eu me arrependeria de nunca ter lavado uma louça, feito uma comida, trocado a roupa de cama.

E, agora que eu seria obrigado a fazer todas aquelas coisas — além de lavar roupa, passar e ajudar na limpeza geral dos espaços comuns da Toca —, eu me via pagando com a língua mais que completamente.

Doía demais estar errado.

Não me acordaram quando continuei dormindo após o despertador tocar, não me trouxeram café na cama, não me ajudaram a manter o ritmo da corrida exaustiva que faziam logo após a combinação de café preto e cereais mais sem graça da humanidade. Estava por conta própria pela primeira vez em 18 anos. Realmente por conta própria.

Eu cheguei à Malasartes Academia uma semana antes das aulas começarem para a orientação, fiz o tour por cada lugar, fui em pelo menos três festas, conheci gente interessante e levei algumas para o quarto. Mas agora aquilo tudo soava como um sonho febril que não aconteceu de fato e só ali, caindo da cama para encontrar o quarto vazio e o burburinho de conversa vindo da cozinha é que realmente percebi a realidade à minha frente.

Ninguém me ajudaria em nada.

Vesti a roupa de ginástica básica às pressas e quase perdi o horário do café — que tomei de pé e na velocidade máxima porque eles sairiam em cinco minutos. Imani, aparentemente, já estava lá fora correndo por algo que eles comentaram mas não fui capaz de compreender enquanto tentava fazer meu cérebro entender que não voltaríamos para a cama. Não sei como consegui, comecei a correr e continuei mesmo assim.

Eu era um atleta quando mais novo, participava de danças exaustivas nos shows de rock que frequentei nos últimos anos, não iria desistir na primeira tentativa.

Evitei a competição que se tornou entre os outros para tentar terminar o trajeto primeiro, Cesare liderando os calouros para o desprazer de Malachai, e Galileu liderando o grupo todo para o desprazer de Cesare. Havia tensão entre os dois, não sabia se mais alguém havia notado mas havia. Galileu intimidava Cesare, mas de uma maneira diferente de sua briguinha com Malachai.

Nosso... companheiro d'Água era só mais um adolescente, recém-adulto comprando uma disputa de egos idiota. Galileu era um homem e Cesare tinha muita consciência disso.

O circuito de corrida oficial da Malasartes tinha uma pista de concreto ao redor dos prédios-dormitórios e das quadras com demarcações de metros corridos, mas o que eles faziam praticamente atravessava o campus inteiro, quase entrando nos limites da mata mais densa da Zona, sem se importar com uma coisa tão simplória quanto uma pista reta e lisa. Acompanhei Olinda em silêncio, em um ritmo controlado que me impedia de cair duro na grama e que ela parecia fazer sem sequer reconhecer que era um esforço.

Seu olhar decepcionado quando me viu chegar atrasado para o café ainda me assombrava, por isso evitei qualquer conversa que a pudesse fazer com o humor ainda pior.

— Você está tentando dar em cima de Imani? — ela perguntou de repente, sua voz ofegante mas não falhada como a minha saiu quando consegui responder.

— Ela é... gata... Muito gata.

Olinda me olhou de esguelha, seu rosto impassível não me dizendo onde queria chegar com a pergunta. Seu nariz se franziu por um segundo.

Aóratos - A Última MesaOnde histórias criam vida. Descubra agora