Untitled part

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O crepúsculo estava tomando o mundo com sua escuridão característica, que ainda não era total, mas que traria em breve o breu da noite que logo usurparia o mundo e o arrebataria. Por algumas horas. Apesar de não ser mais dia, estava bastante quente e um mormaço lhe subia pelos pés, gerando uma sensação boa na volta para casa. Muito o lembra dos tempos de escola, quando estudava na parte da tarde e esse calor sufocante característico de fim de dia lhe subia pela espinha e o abraçava. Era reconfortante.

Mochila nas costas, fones de ouvido no volume máximo e seu uniforme horrendo de trabalho era o que caracterizava os dias atuais, e Narciso, com certa amargura, percebe que muito provavelmente não se lembrará com carinho de seu estado atual. Na escola costumava se divertir com seus amigos, na ignorância burra que tinha em relação ao mundo, ele ainda conseguia ser feliz, ainda conseguia brincar e esquecer que existem problemas maiores. Agora, não mais, perdera sua inocência de criança, e com ela foi-se embora sua genuína felicidade, sobrando apenas a vida adulta. A monótona e cansativa vida adulta.

Seu quintal tinha algumas plantas ornamentais que pertenciam a sua mãe, mas que ele gostava de cuidar e tratar em seus dias de folga como se fossem suas. Era um bom passatempo e uma boa distração. Seguiu caminhando, no embalo da música que agora chegou em seu ápice (e essa devia ser a quarta ou quinta vez que ele a estava ouvindo só naquele dia), era uma música alegre que falava sobre um anjo caído do céu — "Oh, angel sent from up above" — Narciso cantarolou — "You know you make my world light up".

A casa estava escura e abafada, ao que parece as janelas ficaram o dia todo fechadas e as luzes não foram acesas, isso queria dizer que seu pai muito provavelmente não se levantou da cama desde que Narciso saiu para trabalhar. Moravam só os dois e se porventura Narciso não abrir as janelas para entrar um ar e arejar o ambiente, seu pai certamente não faria esse serviço. Isso o irritava profundamente. Considerava seu progenitor um peso morto, um peso que costumava carregar nas costas, quando deveria ser o contrário, afinal, ele é o filho. Ele é quem deveria ser cuidado e protegido e não o contrário. "Deve estar caído de bêbado" — Pensou, enquanto subia as escadas na direção de seu quarto, pisando fundo e pesadamente de propósito, para fazer o máximo de barulho possível — "hora de acordar, benzinho", exclamou essas palavras com uma quantidade enorme de desprezo por seu próprio pai sem nem mesmo perceber. Não gostava de pensar ou de sentir isso, mas era assim que era, e ele não podia evitar.

Passou pelo corredor escuro, terrivelmente abafado, pois o mormaço daquele dia estava acima do normal. Mesmo para um dia quente de verão como aquele — "É, abrir as janelas teria sido uma boa" —, quando passou pelo quarto de seu pai, Narciso percebeu que a porta estava entreaberta e não quis olhar dentro, nem mesmo para saber se o dito cujo estava acordado ou não, preferiu ignorá-lo e passa reto, seria melhor. O amava, Deus sabia que sim, mas seu pai tinha a bendita capacidade de irritá-lo sempre que podia, sempre que era possível. "Não tenho certeza se ainda o amo, e nem acredito em Deus. Portanto, ele não sabe e nem eu" — Essas palavras permearam por seu pensamento enquanto ainda caminhava pelo corredor, que naquela escuridão ficava deveras assustador. Se Narciso fosse uma pessoa crente, isso é, uma pessoa que acredita em algo, muito provavelmente ficaria assustado com esse "algo", mas acontece que Narciso não acredita em algo, não acredita em espíritos, bruxas ou demônios. Folclore pra ele é conto de fadas e Deus, um conto de gatunos. Portanto, passou indiferente pelo corredor, e a escuridão foi apenas um detalhe que ele ignorou. Primeiro tinha ficado irritado com seu pai por não ter ligado as luzes nem aberto as janelas, mas agora percebeu que não era tão importante assim afinal, ele mesmo poderia ter feito isso antes de sair de casa. Era isso que faria amanhã.

Girou a maçaneta, sua porta se abriu e ele adentrou em seu quarto. Seu lugar favorito da casa, pois ele o arrumou do seu jeito, do jeito que gosta e acha correto. Seu pai não costuma entrar e Narciso acha isso muito bom. A janela estava entreaberta, deixando que a luz do dia entre e ilumine o cômodo de maneira natural, como deveria ser na casa toda. A luz furtiva que já estava fraca (pois a noite estava chegando) iluminava pouco, projetando várias sombras por todo o quarto, mais escurecia que iluminava, e pensando bem, talvez fosse melhor que não tivesse entrado luz alguma (como acontecia no resto da casa) pois assim Narciso não teria visto o que viu. Não teria enxergado o que enxergou. Nesse meio-termo entre luz e sombra, ele viu a face da própria morte e a primeira coisa que passou por sua cabeça foi um ditado popular há muito esquecido por ele "Quando se olha para o abismo, o abismo também olha para você".

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