Amigo Infiel

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Ele praguejara outra vez enquanto passava de carro pelo quarto mercado lotado da cidade. Não era para menos. Quem em sã consciência se arriscaria a sair para comprar qualquer coisa em pleno 24 de Dezembro, seis horas da tarde?

Mas Alex tinha uma boa razão. E sua frustração emergia porque sempre que pensava em agradar o filho, algo complicava as coisas. Na maioria das vezes acabava cedendo e desistindo, mas hoje ele queria mesmo fazer algo especial — o natal era a data predileta de ambos —, e não tinha outra alternativa que não aguardar mais um pouco antes de ficar junto dele, já não bastasse o dia exaustivo de trabalho que enfrentara trancado em seu escritório.

"Talvez o Deni tenha o que tô precisando", pensou ele. Guiou o carro por ruas iluminadas pelas belas luzes natalinas e, quando chegou, percebeu que dera sorte de encontrar a vendinha sem quase ninguém. Estava diante da prateleira de enlatados quando ouviu:

— Olha ele aí! Há quanto tempo, hein, Alê? Como vai o filhão?

Deni parecia animado em vê-lo e Alex sorriu ao cumprimentá-lo.

— E aí, Deni! Cê tá bem? A correria tá me matando, mas o Gabriel tá bem. Crescendo. E os seus?

— Lá em casa tá tudo tranquilo. — O dono do mercadinho deixou o caixa e foi até ele. — Qual é a emergência dessa véspera de natal?

— Cara, eu tava começando a preparar a ceia, somos só o Gabriel e eu esse ano, e percebi que esqueci a sobremesa favorita dele. É meio que uma surpresa, entende? Você tem aqueles pêssegos em conserva? Ah! E creme de leite! Preciso de creme de leite também.

Deni deu uma espiada na prateleira detrás deles.

— Creme de leite... — entregou uma caixinha ao amigo — e parece que não tenho mais conservas de pêssego no estoque. — Alex deu um suspiro. — Mas, pensando bem, eu acho que pus a última no meio das coisas que eu pretendia levar pra casa hoje.

O homem voltou ao caixa, remexeu em algo atrás do balcão e lá estava ele de volta com a lata em mãos.

Alex aceitou-a, um misto de gratidão e alívio, mas ainda assim perguntou se o amigo não iria mesmo precisar, pois ele poderia contentar Gabriel com outra coisa. A lenga-lenga altruística de sempre, antes da sua fala ser interrompida.

Ele teria ficado feliz se tivesse sido pela outra cliente que aguardava de cara amarrada na fila, mas fora pelo segundo dos homens que invadiam a loja sem cerimônia.

— É o seguinte, chefia! — disse ele. — Isso aqui é um assalto e eu quero todo mundo indo pros fundos da loja bem quietinhos.

As armas que carregavam eram um ótimo incentivo.

∗∗∗

— Fazia um tempão que eu não te via, Fred!

O menino estava sentado em sua cama, jogando no celular, quando viu o antigo amigo olhando-o da porta. Usava um saco de papel na cabeça, cujos buraquinhos evidenciavam suas íris castanho-alaranjadas — elas o assustavam um pouco quando era menor, mas ele já havia se acostumado —, e tinha a pele pálida, meio amarelada, como Gabriel bem lembrava. Só não fazia ideia de como ele entrara na casa.

— Oi — disse ele. — Tá sozinho?

— Meu pai acabou de sair. Disse que ia no mercado buscar alguma coisa que tava faltando na nossa ceia de natal. Entra aqui! Quer jogar alguma coisa?

O garoto, tímido, entrou no quarto e respondeu àquela pergunta com um quase imperceptível aceno de cabeça.

— Ainda gosta de jogos de tabuleiro? Lembro que a gente jogava damas quase todo dia.

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