Os corredores parecem infindáveis.
Não são como os dos andares superiores, as avenidas com passadeiras de veludo a cobrirem as lajes negras com minerais dourados do chão; as paredes cinzentas decoradas com quadros, citações, exibições; as enormes praças como resultado dos encontros das compridas ruas... Não. Nada disso.
Todos os corredores são iguais. O chão de placas de mármore baço e liso, as paredes de um branco igualmente doentio, canos de metal verde-claros a percorrem-nas, legendas com indicações em alguns. As luzes do teto retangulares, demasiado brilhantes.
O som do silêncio é dos mais barulhentos que já ouvi.
O aroma a limpo e lixívia é tão intoxicante que sinto os pulmões queimar.
Mas também há o cheiro de dor e medo no ar. Um toque de pânico e loucura. Uma pitada de desistência.
As duas ou três portas em cada corredor são despidas à exceção de uma janela de plástico extra-forte a permitir a vista para o interior da divisão, e uma placa de metal gravada com o nome da sala.
Eu já sei qual é o da minha: Unidade Laboratorial Experimental, Sala de Testes de Resposta Cerebral 3 - TRC3.
Vivi seis anos da minha vida naquela sala do inferno.
Forço os meus joelhos a não ceder enquanto me empurram por trás, as minhas mãos dentro de algemas, obrigando-me a caminhar pela passerelle do diabo. Sinto-me morta. É uma sensação de déjà-vu que me consome: o caminho para a tortura, a cabeça baixa porque não existem forças para levantá-la, a indisposição no fundo do estômago como se a vontade de vomitar se estivesse a formar, mas não se decide a vencer e deixa-me na expectativa se me terei de curvar e desfazer-me aqui mesmo ou superar e continuar o desfile.
Oh, Deuses... Outra vez não...
Mas está a acontecer, Moon. Está. A. Acontecer. Por isso, desta vez, vai com dignidade.
Obrigo-me a levantar o queixo para cima, ajeito a postura, ando com a confiança de quando estou em missão - ou tento. Não o vou deixar ver-me sofrer. Não vou dar-lhe a satisfação de que está a ganhar. Não me vou curvar.
- Entra - o meu acompanhante abre-me a porta de um vestiário - vai mu...
- Eu sei o que fazer.
Fecho a porta e pego na única peça que me esperam numa das cabinas de muda, e troco de roupa, deixando as que visto no mesmo local. Olho-me na película refletora da parede e engulo o choro.
Sou criança novamente. A criança amedrontada de laboratório. O brinquedinho de testes pessoal do Raven.
A camisa que me deram para usar nada mais é que um tecido fino de um tom branco-esverdeado. É a única coisa que visto.
Descalço-me e solto o cabelo, por último, sentindo-me exposta ao mundo, uma boneca com apenas um vestido como roupa, pronta para ser utilizada como personagem no jogo de uma criança - ou um psicopata desumano.
Engulo e respiro assim que batidas violentas soam na porta. Abro-a e o homem encarregado de me levar desliza as mãos pelo meu corpo, por cima da camisa, procurando um sítio improvável onde possa ter escondido uma arma. Enfia-me os dedos no cabelo e pela primeira vez quase desejo que ele fosse mesmo fogo e incinerasse este homem.
Minutos depois, estamos de volta à caminhada, eu a sentir as lajes geladas debaixo dos pés, pouco depois em frente à porta que eu tanto conheço, perante a pequena tabuleta no seu centro que me tira o sono à noite.
Engulo as entranhas que se revolvem dentro de mim e ignoro a temperatura gélida. Abro a porta e entro como se aquilo fosse tudo meu.
O interior da sala é tal e qual como me lembrava e apetece-me gritar.
Tudo - todas as paredes, chão, teto, luz - é branco. Aquele branco destilado que nos magoa os olhos só de olhar e nos parece sufocar, nos leva lentamente à loucura e súplica por um pouco de cor.
As únicas coisas que têm uma tonalidade diferente são a câmara de vigilância a um canto no teto, a cadeira delgada de metal que espera por mim, o aparelho prateado endemoniado que tanto reconheço na mesa de apoio com rodas que o sustenta, com todos os fios multicolores a saírem dele e a serem tanto uma maldição como uma benção para os olhos, e o retângulo grande de vidro refletor na parede à minha frente - eles conseguem ver-me sofrer e eu também, só não os consigo vê-los a regozijar-se com isso.
Sento-me na cadeira fria, e controlo o corpo para não me arrepiar ou tremer. Se bem que talvez o meu corpo não esteja a reagir assim relativamente ao frio.
Uma mulher em farda verde-água e máscara descartável entra pela outra porta que dá acesso ao quarto, a que está ligada à sala de observação, e encaminha-se na minha direção, o olhar inexpressivo. As mãos enluvadas alcançam as pregas metálicas presas nos apoios de braços da cadeira, e posicionam os meus antebraços dentro destas, fechando-as de seguida e imobilizando-me o membro. Prossegue a fazer o mesmo ao outro pulso e pés.
Depois, arrasta um pouco a mesa de metal de apoio com rodas e pega de uma das prateleiras inferiores uma pequena saqueta com letras miudinhas a legendá-la. Não preciso de me esforçar a ler para saber o que é.
Rasga a embalagem e retira um comprimido encapsulado de lá de dentro. Do mesmo suporte, faz aparecer magicamente uma garrafa de palhinha com água.
- Abre a boca - diz-me. Os olhos são tão vazios que ela parece um reflexo meu de uma dimensão alternativa.
Sabendo que não há como escapar, controlo o meu temperamento e faço como me diz. Mas, raios, não lhes quero dar essa satisfação.
Assim que me coloca a cápsula na boca, rolo-a para debaixo da língua, tragando dois goles de água a seguir. Assim que ela pousa a garrafa no carrinho e se aproxima do mesmo para preparar a máquina, a voz nojenta do Raven soa pelos altifalantes incorporados na sala:
- Garnet, minha querida, não sejas assim. Engole o comprimido, vamos lá.
Os meus punhos fecham-se e as minhas unhas cravam-se na palma da mão enquanto olho para o meu próprio reflexo na janela de observação, sabendo bem que ele está do outro lado do vidro. Ele conhece os meus truques demasiado bem. Não há como escapar. Não há como me salvar.
A enfermeira dá-me mais um pouco de água e engulo a droga desta vez, prometendo a mim mesma que nunca mais me deixarei apanhar nas garras dele de novo.
Não demoro muito a começar a sentir as tonturas que tanto conheço, a visão a começar a ficar nublada, embaçada, fosca, e depois desfocada com manchas negras, os ouvidos a parecer que se encontram debaixo de água, os suores e arrepios a percorrerem-me o corpo e os lábios subitamente secos. O desconforto de mim dentro do meu próprio corpo é insuportável, o nojo e as náuseas consomem-me.
Ao longe, muito ao longe, a voz do Raven parece um assombro das profundezas do Inferno, grave e doentiamente satisfeito.
- Então, amor, não estás satisfeita com o penteado? Devo fritar-te um pouco mais os miolos para tornar a cor um ou dois tons mais vibrante? Ouvi dizer que o vermelho-néon está na moda. Que me dizes, esperteza? Não tão desafiante agora, hã? Miúda idio...
O olhar furioso que lhe lanço através do vidro é a última coisa que faço antes da primeira onda de energia ser descarregada sobre mim e um grito horripilante me sair arranhado da garganta.
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Segredos de Sangue
ActionEstamos em 2126. O Mundo não foi dominado por robôs como se pensava no passado, nem as secas e inundações destruíram o planeta. O Fim do Mundo não aconteceu. Bem, pelo menos, não da forma que se pensava. Agora, o planeta inteiro é controlado por alg...