Ⅺ • Platonicamente

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Sophie

Entramos na cabana, todos sem ânimo e esperança. Deitei-me na cabana e vi o céu ainda escuro, e pensei que talvez, pela primeira vez em muito tempo, eu poderia dormir. Meu corpo estava exausto. Lembro-me que antes de dormir eu sempre fumava um pouco.

Eu só ainda não tinha desistido por Sam. Mas estava quase.

No dia seguinte, ficamos quietos a maior parte do tempo, sem coragem de falar nada. Ninguém culpou Sam, pois ela não escolheu nada disso, mas a culpa dentro dela era visível. Ela quase não me olhava mais nos olhos, parou de dormir perto de mim e de sorrir. Alana passou a maior parte do tempo reclamando de sede. E meu estômago, da fome. Nesse dia, toda comida acabou. Cada um comeu sua última comida enlatada e começamos a rezar para ter mais uma. Os salgadinhos ficaram para Marck e eu, porque estávamos mortos de fome após usar tanta energia para matar tantos monstros. 

Lembro-me perfeitamente da sensação de não saber quando seria minha próxima refeição, e era desesperadora. Minha maior preocupação era começar a perder meus músculos, porque eu sabia que se outra criatura aparecesse, eu não teria força o suficiente. Depois, comecei a temer pela saúde mental de Sam. Ela ficava na cama a maior parte do tempo, sem interagir, sem me responder. 

Conseguia sentir as paredes do meu estômago, considerando comer até as paredes da cabana. Eu estava privada de comida e se eu me permitisse sentir tudo que estava dentro de mim, eu iria explodir. Conseguia visualizar todos os eventos em família que tive com meu pai. Como ele cozinhava bem. Como eu era sortuda por ter um prato em minha mesa, e muito saboroso.

Pensei em quanto tempo demoraria e o quão perto da morte teríamos que ficar para começarmos a comer uns aos outros. E me veio o pensamento de que não precisávamos comer uns aos outros, se os corpos mortos ainda tivessem nas cabanas, talvez tivéssemos comida... O canibalismo se tornou algo racional em minha cabeça. Isso que o medo fez conosco. 

— Aonde cê vai? — Sam me perguntou, observando minha mão tocando a maçaneta.

— Na cabana do lado. 

— Não tem comida lá, Sophie — Marck me lembrou.

— Eu já volto.

Fiquei de frente para a porta da cabana em que eu desmaiei e Sam me salvou. A cabana era exatamente igual à nossa, mas sem ninguém vivo dentro. 

Abri a porta com pesar. O péssimo cheiro invadiu meu nariz e recuei por um segundo, pensando se era certo mesmo. Sobreviver sendo canibal? Eu era uma caçadora, sei que comer carne humana não é a melhor das ideias, mas desde que eu fique longe do cérebro humano, tinha boas chances de sobreviver.

Meu corpo precisava de alimento. Era o único jeito.

Quando abri a porta, esperando aquela pilha de corpos, vi que estava tudo limpo. Não tinha um corpo, apenas o chão que estava sujo, e só. Lá dentro havia uma poça de sangue grande e um único braço que parecia ser de um homem. Tranquei a porta, fechei as janelas e as cortinas. O braço estava desmembrado. Cuidadosamente me agachei até ficar na altura dele. Segurei a mão do braço e retirei do meu bolso uma faca pequena de cozinha e comecei lentamente a tirar dedo por dedo.

Enquanto retirava os dedos da mão, sentia um cheiro ruim, o que era normal. O problema é que eu já tinha dividido a carne em pedaços e mesmo assim não tinha sangue algum nela. Me perguntei há quanto tempo aquele braço estava na cabana e se era mesmo humano.

Aproximei minha cabeça lentamente da mão e espremi os dedos, tentando retirar algum líquido de lá. Uma gosma preta saiu da mão. Imediatamente me levantei, assustada, lembrando do Tall Man.

O Abismo do MedoOnde histórias criam vida. Descubra agora