III - Plantação de Algodão

53 18 55
                                    

Codó - Maranhão, 04 de dezembro de 1920.

Firmino está sob o barracão, observa o céu gris pelas nuvens pesadas; a chuva que começou sem aviso interrompeu o trabalho de preparação da terra para o plantio da próxima safra de algodão que começará em janeiro

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Firmino está sob o barracão, observa o céu gris pelas nuvens pesadas; a chuva que começou sem aviso interrompeu o trabalho de preparação da terra para o plantio da próxima safra de algodão que começará em janeiro. O homem de vinte anos está apoiado em uma das vigas de madeira que sustenta o local em que os trabalhadores fazem suas refeições; seus companheiros jogam dominó nas mesas feitas de tábuas improvisadas. Enquanto espera sua vez, pita o cigarro de palha de cheiro adocicado, sua tez é acobreada e reluzente, um bigode fino encima seus lábios grandes e grossos que parecem estar sempre prontos para um beijo, o corpo forte e musculoso foi talhado pelo trabalho nos campos desde a primeira infância. Desde o nascimento sua mãe, embevecida por sua beleza incomum, apelidou-o de Bonito, nome que pegou na família e em Codó; e foi nessa certeza de ser belo e amado que Firmino forjou sua identidade.

O som de cascos trotando pela terra molhada chama sua atenção, divisa no horizonte um cavaleiro que se aproxima a todo galope, aparentemente indiferente ao temporal. Um raio cai não muito longe dali e o ribombar do trovão mistura-se à uma gargalhada sardônica vinda não se sabe de onde que ressoa pela manhã escura, provocando calafrios em Firmino; o homem franze o cenho tentado identificar o rosto do indivíduo que está cada vez mais próximo, mas funde-se à paisagem como se não fosse feito de carne e osso.

O cavalo avança rápido e em linha reta na direção do trabalhador. Firmino vê o brilho de uma lâmina enferrujada refugindo através da água, uma bocarra de dentes brancos grandes e irônicos está escancarada e destacando-se sob o chapéu de sombras. No último segundo desvia-se para ocultar-se por trás da viga; a guia de sementes, que está amarrada em seu cinto e oculta pela camisa, quebra-se. As contas circulares e coloridas caem no chão, afundando na lama sob seus pés. Atacante e montaria desvanecem entre gargalhadas chacoalhantes que lembram o som de ossos estalando.

Que moléstia foi essa? Questiona-se ainda sentindo o odor pútrido no ar. Busca o patoá que está guardado em seu bolso, o tecido de chita do amuleto protetor está esgarçado, como se tivesse sido cortado. Sendo Filho de Santo não é a primeira vez que tem uma experiência dessas, mas nunca antes sentiu-se tão em perigo. Não lembra de estar em dívida com nenhum encantado e logo mais dançará no culto à Santa Bárbara.

Ainda está refletindo sobre o acontecido quando uma carroça de boi se aproxima do barracão; por um instante teme que seja outra entidade, mas reconhece seu irmão. Ao invés de alívio, sente preocupação, ninguém enfrenta um temporal para dar uma boa notícia.

─ Dia, mano Tonico ─ Firmino cumprimenta-o levantando o chapéu.

─ Dia, mano Bonito ─ Tonico é três anos mais velho que o caçula, mas não possui o mesmo porte garboso dele, está ensopado pela chuva, mas sequer desce do veículo, respondendo atropeladamente e sem cerimônias ─ Mano, é Ceiça! Ela tá morre-não-morre lá na fábrica.

Ao ouvir o nome da esposa Firmino sobe na carroça, sem se preocupar em avisar o responsável pela plantação; perderá essa diária, mas a constrição em seu peito lhe diz que não pode demorar mais.

─ Que se assucedeu? ─ Indaga em pânico, enquanto as rodas de madeira feitas para a estrada de terra, chapinham nos sulcos abertos no chão.

─ Ela tá parindo ─ Tonico responde, manejando o animal para que façam a trajetória de volta.

─ Mas ainda não tá no tempo! ─ Firmino sente as pernas fraquejarem, estão casados há quase quatro anos e nesse meio-tempo foi a primeira vez que Conceição engravidou; apesar de já ter um filho, anseia por ser pai.

Tonico guia o boi pelo lamaçal que se tornou a plantação, as grossas gotas de chuva fustigam sua pele; não quer assustar ainda mais o caçula, mas decide ser sincero.

─ Mano, nós tamo achando que fizeram trabalho pra Ceiça.

Firmino espanta-se, levando novamente a mão direita ao patoá.

─ Mas pra quê alguém faria isso? Ela nunca fez mal pra ninguém.

─ Ela não, mas você... ─ Tonico argumenta, mas cala-se em seguida, o assunto de Luzia é tabu na família.

Após o longo trajeto chegam na Fábrica de Tecidos, a chuva amainou e aproxima-se do meio dia. As fiandeiras estão se revezando entre os teares e a reza do terço; Dona Teinha, mãe de Firmino e Tonico, conduz as preces, Aurice, sua comadre, foi em sua casa avisar sobre o que estava acontecendo. Ela abraça o filho com força, não tem apreço pela nora, mas não significa que queira seu mal.

─ Bença, mãe ─ Estende a mão direita, que a senhora de lenço vermelho na cabeça, segura e leva aos lábios.

─ Deus te abençoe, meu filho.

─ Como ela tá? ─ questiona com voz trêmula.

─ Nada bem, meu filho, nada bem! ─ Teinha responde. Em suas mãos escuras, e engelhadas pela soda cáustica, traz um rosário de contas ─ Hoje é dia de Santa Bárbara, faça uma promessa!

Pai Algodãozinho, um senhor de idade avançada, pele negra, corpo alquebrado e cabelos completamente grisalhos, apoiado em um galho de jatobá, claudica em direção a Firmino. O homem mais jovem se ajoelha à sua frente recebendo a benção do pai de santo. O idoso acompanha-o desde os cinco anos, quando apresentou os primeiros sinais de mediunidade. À pedido de Dona Teinha e Seu Fubá, o Pai de santo negociou com os Encantados, os espíritos da mata, para que levantassem as correntes até que Firmino completasse o décimo quinto aniversário; desde então instrui o rapaz nos mistérios da mata e imagina que com o tempo ele pode lhe suceder no comando do salão.

O semblante do homem mais velho está marcado pelo cansaço e preocupação. É um dia importante no Terecô, ele deveria estar nos preparativos para a festa de Barba Soeira, que acontecerá na surdina, ao cair da noite nas margens do Rio Codózinho.

─ Meu filho, tá tendo disputa pela vida de tua esposa e filha ─ O idoso lhe diz com pesar ─ Foi feito um trabalho de sangue contra tua família!

─ Desfaça meu pai, desfaça! ─ Suplica.

Pai Algodãozinho balança a cabeça em negativa, já havia consultado as entidades, isso estava acima de suas capacidades.

─ Nem eu consigo desfazer esse trabalho ─ Desculpa-se ─ Temos que negociar!

─ Não importa o preço! Eu pago! Quero que Ceiça e minha filha vivam! Nem que eu precise morr... ─ O Pai de Santo avança para fechar a boca de Firmino antes que ele conclua a frase; mas o vento frio e ululante que abre intempestivamente uma das janelas da Fábrica e enregela seus ossos sexagenários, lhe diz que é tarde demais.

O pacto foi feito e não há como voltar atrás.


--------------------------------------------

Oioi, o que estão achando?

Seu comentário é muito importante.

A mulher de Pés de SapoOnde histórias criam vida. Descubra agora