Era ofensivo ver tanto vermelho que não se passava de um tesão passageiro. No quarto da bagunça, daqueles que toda casa tem, encontrei um arco íris e seus pinceis. Quando Caio disse que iria ao mercado fazer umas compras, para jantarmos de forma decente, percebi que aquela era minha chance e se eu iria mesmo ficar ali, as coisas precisavam dos meus toques. Peguei a lata com o amarelo mais vibrante, arranquei a tampa e joguei na parede, assim de qualquer jeito.
Os respingos abstratos escorreram como lágrimas e um belo tom de laranja se intensificou. Sentei no meio do quarto, acendi um cigarro e fiquei observando a parede secar. Aquela enorme tela fazia questão de mostrar silhuetas familiares, de uma vida passada e talvez uma vida feliz onde o sucesso era rotina.
Eu não tinha muito, mas meu peito era do tamanho do meu nome: eu era uma puta barata, trocada por um copo de uísque e segundos de orgasmos. Senti a lágrima escorrer no rosto sem alegria. "Que arrependimento! Que merda!" Um nó na garganta e a dor no pescoço me levaram ao desespero e de repente esqueci de respirar. O celular tocou no bolso, ao pegar o aparelho franzi a testa: nenhuma ligação, nenhum alarme, nem mesmo sinal. Coloquei de lado e ouvi a sineta da casa, não lembrava se Caio tinha levado as chaves, então fui abrir a porta.
Não...
havia...
ninguém:
a rua
estava
vazia.
Fechei a porta e voltei ao quarto vazio, meio vermelho, meio laranja e partes amarelas: um craquelado de tons quentes. Encostei a mão na parede e quase senti o pulsar dos tijolos no concreto como se fossem veias dilatadas. O celular tocou outra vez, peguei já irritada; no visor o nome de Chico piscava e meu corpo estremeceu gélido.
— O que você quer? — Gritei levando a mão à cabeça.
...
— Alô!
...
Olhei para a tela e a ligação havia caído, segundos depois uma nova chamada, era Vitor.
— Fala!
— Onde você está?
— Eu já te mandei a localização.
— Não, não mandou.
— Ué! — Franzi a testa.
— Onde você está, Bell? — Parecia irritado.
— Eu estou na... aqui no...
E então me dei conta de que eu não sabia onde estava. Eu saí ontem e voltei... mas como? Não me lembrava mais.
— Eu já falo contigo. — Respondi e antes que pudesse desligar, a ligação já tinha caído.
O celular tocou outra vez com o nome de Chico, tremi ao atender, mas do outro lado só havia o ruído parental. Subitamente arremessei o aparelho na parede vermelha e muitos pedaços ganharam tons de laranja, deixando uma marca descascada na tinta fresca. Caí de joelhos e chorei sentindo novamente o nó da garganta me sufocando. Eu precisava de alguém que me revisasse os olhos e os lençois e não minha sanidade.
Olhei para as mãos: vermelho. Tinta? não, sangue. Meu sangue. "Como? Meu Deus!" Minha boca tremia, acho que é assim que a gente morre: um pouco de cada vez, um pedaço a cada dia. E dessa guerra, eu estava perdendo. Deitei sentindo o absoluto nada quântico, sem saber como piscar os olhos e aquele nó me sufocava ainda mais. Cada pedaço de carne vivo ardia e paralisava, trazendo minha mente para um espiral psicodélico e indecifrável.
— Bell! — Ouvi a voz de... — Bell!
Mas já estava com o corpo caído no precipício e não havia nada mais sensual do que deitar no escuro. Senti o corpo inteiro convulsionar pedindo piedade. Pedi perdão para todas as versões que consegui ser: eu só buscava um amor, recebi negligências. Era isto o que eu estava fazendo com minha vida?
Sofrendo por... homens...
Eu dei tudo o que tinha e fui tudo o que pude.
Senti o cheiro da chuva e do verde das folhagens, a voz sussurrara meu nome em uma satisfação sádica e foi quando meu peito quase explodiu que abri os olhos, me recusando a permanecer na beira.