Estava em casa.
Não me restavam dúvidas.
Lá fora a tempestade regava as plantas.
Meu corpo estava exausto, mas minha mente parecia descansada. Pisquei encarando o teto de gesso... tão familiar... me remexi sentindo o conforto do sofá impecavelmente branco e sentei. Ao meu redor, as paredes da casa que eu havia projetado estavam em seus tons pasteis imaculados: o cinza, o bege, o cristal e o branco. Uma ausência de cores palatável. Olhei para o centro de vidro e lá estava o cinzeiro com bitucas, duas taças, uma cheia e outra vazia: a minha com marca de batom marsala. A garrafa de vinho faltando exatamente duas taças ali.
Sentado na varanda, de costas para mim, Chico fumava seu maldito derby... prata? Ainda assim impregnava em meus cabelos. Parecia tranquilo, enquanto encarava o preto intenso do mar noturno, que ficava a duas quadras de nossa casa. Lembrei do amargor levemente mais ácido de uma taça de vinho suave misturado com o ascendente de escorpião dele e enquanto eu morria naquele sofá, ele namorava a lua cheia.
Me olhei no espelho a frente: estava aparentemente saudável demais e eu definitivamente não me reconhecia naquele cabelo curto, em outra vida talvez. Era um cabelo negro como um véu soturno e estava ensopado do vômito escorrido; minha camisa colada ao peito, manchada com meus destroços astrais de outro paralelo. Senti a cabeça doer como se uma vida precisasse espremer para caber, meu coração ficou miúdo, mas não doeu, já que foi o sentir mais humano que me ocorreu neste segundo.
Eu conseguia suportar a rejeição do meu amor, mas eu já não estava em meu juízo perfeito. Não sei se por sorte ou revés, mas agarrei o saca-rolhas da mesa. O anel de casamento brilhou me fazendo recordar do dia mais feliz de minha vida, onde ali eu respirava amor e liberdade. Ali dois jovens estavam comprometidos a desbravar o mundo. Ali deixamos nosso egoísmo no porão. Ali sorri diante da maior piada do espetáculo e fui incapaz de chorar com a tamanha traição matrimonial.
Chico havia me ensinado a voLTar e agora quebrava minhas asas. Pior... eu tinha apenas uma das asas.
"Não é possível! Ele disse que me amava."
É, ele disse.
Ele disse que envelheceríamos juntos."
É, ele disse.
Chico havia dito muitas, muitas coisas que nem ele lembrava mais, isso enquanto construímos nossa vida dos sonhos, aos vinte e poucos anos. Fui bela demais para ser desejada, mas não o suficiente para ser amada.
Nem todos os AMdORES*, mas sempre um grande AMdOR* consegue nos corroer.
Fiquei de pé, por trás da cadeira, sentindo o aroma de lavanda com nicotina sair das madeixas castanhas. O cigarro foi tragado lentamente, deixando que as cinzas manchassem meu porcelanato. Ódio... e não era por causa do piso. Chico jogou a bituca acesa no chão, restando apenas o prata da guimba e levantou. Quando se virou para contemplar sua vigarice, arregalou os olhos.
Eu vi sua face de satisfação transmutar para um desespero gradativo ao me ver magestosa ao seu lado, como deveria ser. Nunca me senti capaz de executar nenhuma imoralidade, mas a frieza com que o olhei, meu deu forças para erguer o punho e enterrar o saca-rolhas em seu peito e de baixo para cima, rasguei. A camisa branca ganhou uma mancha pequena, que logo ficou grande e empapou o tecido de algodão delicado.
— Bell... — Gaguejou fraquejando ao apoiar suas mãos em meus braços.
O segurei como se fosse um cristal.
— Deveria ter garantido que eu jamais me levantaria outra vez, meu amor.
Me inclinei sentindo o ar entrar e sair devagar do peito dele, beijei aqueles lábios com gosto de deslealdade e o golpeei mais uma vez; sustentei até o coração, que nunca foi meu, parar de bater. As mãos, banhadas em licor viscoso, fiz questão de esfregar em todas as paredes brancas, deixando a mistura de nós em cada canto daquele sonho a dois: vermelho como o derby, vermelho como a cor do quase morrer. Às vezes, a dor é psicológica e ao abrir o hospício da mente, me senti, finalmente, em casa. Ali, era real...
Fui estrambólica e romântica;
em sua passagem
do fim, dedico:
Bell a Chico.
Fim.
*amores/ dores
*amor/ dor