Capítulo 1

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Silêncio. Na verdade, nenhum dos cincos sentidos era identificável. Era como dormir, exceto sem sonhos nem pesadelos. Apenas a sua consciência, ou quase. Uma lembrança de que você já existiu.

É lamentável voltar a existir apenas para ser morto logo em seguida. Pelo menos não teve que sentir por mais tempo, de uma vez só, todos os sentimentos e traumas que suas duas outras metades passaram. Pelo menos isso. Mas ver o rosto dela, aquele rosto marcado por rugas de cansaço e tristeza, é a pior primeira e última coisa a se ver. Apenas alguns minutos, alguns minutos dessa visão do inferno, fizeram-o perceber que cometeu um grande erro ao entrar naquela máquina estúpida e parar de existir. Nesses minutos, desejou que nunca sequer tivesse existido.

Abruptamente, a inexistência teve um fim. Sensações e sentimentos vieram, outra vez, todos juntos, emaranhados, levaria semanas para organizá-los, digeri-los. Decidiu não se mover, talvez tenha algo de errado, talvez o conceito humano de purgatório estava certo afinal das contas. Assim ficou por minutos, ou horas, não se sabe ao certo. Logo percebeu que não era uma ideia muito boa, já que com a falta de estímulo, tornava a lembrar-se de tudo, cada lembrança doía como uma flechada. Resolveu abrir os olhos. Era um lugar relativamente escuro, exceto se olhasse para cima, onde veria um pequeno ponto branco no céu. “A noite no mundo humano sempre foi mais bonita” pensou ele “ Mais íntima.” Ao tentar se levantar, as mais profundas dores corroíam seu corpo em lugares que nem acreditava ser possível. Se lembrou de como havia chegado naquele local, e sentiu ainda mais cansaço. Não acreditava ser possível sair escalando. Mas o impossível foi provado ao contrário várias vezes em apenas um dia, valia a pena tentar.

Com esforço, tornou a subir a primeira parede que viu, atividade que se mostrou extremamente complicada. Era como se seu corpo não o obedecesse, e quando obedecia, fazia de uma maneira desengonçada, como se estivesse reaprendendo a andar. O que no fundo estava, tendo em mente que não ocupava um corpo já fazia séculos. Enquanto desvaneava, acidentalmente pisou em falso. Xingava-se internamente por isso, seu corpo estava coberto de hematomas também. Mas antes que caísse nesse precipício pela segunda vez em apenas um dia, sentiu algo lhe ajudando, uma entidade, um ser. Na verdade não era um outro alguém, logo percebeu ao olhar para trás, e sim uma espécie de perna negra de aparência gelatinosa o segurava. Outras surgiram depois, e tão facilmente quanto respirar, tomou a escalar a parede. “Talvez seja alguma lembrança da antiga forma Dele” pensou Elktaur. Apenas se lembrar daquele ser, daquele monstro, já era extremamente dolorido. Infelizmente, ele percebeu que não seria a primeira vez que teria que enfrentar sua existência. Não só a sua, como a daquele humano egoísta. Se soubesse que daria a luz a um homem mais asqueroso do que os quais tinha contato no mundo humano, nunca teria se separado. Mas aqui estamos, não é mesmo? A grande ironia da vida.

Rapidamente chegou ao topo. Vendo apenas uma paisagem desértica, exceto por uma floresta relativamente densa que estranhamente crescia ao lado. Era surpreendente como o planeta do mundo dos humanos era “vivo”, não tanto quanto o Mundo dos Centauros, mas quando ainda trabalhava como engenheiro chefe do Portal, se surpreendia toda vez que lembrava que plantas eram seres vivos. A ideia de uma planta carnívora já era demais para ele processar. Resolveu testar a sorte e adentrar-se a ela. “Se, aparentemente, eu consigo utilizar a forma Dele para alguma coisa. O que me surpreende que agora eu tenha acesso.” supôs Elktaur “ Não faz sentido ponderar se lobos ou outras criaturas possam estar à minha espera. Sedentas pelo meu sangue.”

E então foi, com passos lentos e arrastados. Não queria usar o poder Daquele, que havia trazido tanta angústia e sofrimento. Seria melhor ignorar o máximo possível de um período que Ele já viveu, de seu ser. É claro que nunca se perdoaria pelo que Ele fez, por mais que não tenha sido necessariamente a sua culpa, já que, não tinha nenhum meio de prever o que iria acontecer em seguida. Mas mesmo assim, o peso ainda estava em seus ombros. Simultaneamente, questionava-se o porquê de estar vivo de novo. Aquilo não tinha a mínima lógica. Tinha noção dos monstros que havia criado, do motivo pelo qual ela o disse que o ato era necessário. E não discordou nem um pouco do seu destino, era melhor do que lidar com sentimentos e ações deles. As memórias deles. As memórias apareciam como assistir um filme, ver outra pessoa performar. Entretanto, ao sair da sala de cinema, você descobre que todo o filme, todos os acontecimentos, foram, na verdade, reais. E você foi o grande financiador disso. E por ser o grande financiador de algo, que não importasse quanto tempo passasse, nunca seria o mesmo, o melhor futuro era a morte certamente, que era, não um castigo, mas sim uma dádiva. Uma maneira de uma alma quebrada há tanto tempo, que Xamãs se sabe como se uniu novamente, descansasse. Não só a sua, como a da sua amada. Com todos os problemas que ele acabou causando, repúdio e ódio eram a reação esperada, e que se julgava merecedor. Havia de merecer todas as coisas mais horrendas que já vira. Uma vez, quando estava em uma biblioteca que ficava perto de casas de nobres e da própria família real, após uma sessão de estudos intensivos sobre conceitos da física no mundo humano (que por sinal tem suas diferenças com a do Mundo dos Centauros), decidiu ler um pequeno livro sobre história humana, por pura curiosidade. E foi alí, para o seu mais profundo horror, que descobriu técnicas de tortura dos mais tipos variados, estranhamente gráficas para um livro, que olhando por cima, parecia inofensivo. Nesse exato momento, se sentia merecedor delas.

Após o que pareceram-se horas, mas a sensação era de que tinha andado por semanas, chegou a um cenário que lhe parecia familiar. Não havia nada demais, apenas árvores densas, troncos caídos, alguns arbustos, com uma pequena caverna se olhasse mais ao fundo. “Talvez o Cervo tenha passado por aqui” ele pensou, mas logo lhe veio a ideia de que esse local pudesse ser algum acampamento de guerra, se fosse um, possivelmente era de anos e anos atrás, visto que não havia sobrado nenhum indício do mesmo. Enfim, não havia tempo para se perguntar de algo que nem ao menos lembraria. Logo foi em direção a caverna e se abrigou lá. Tentando se deitar, e na medida do possível, se aconchegar no chão duro da mesma, fechando os olhos. “Isso não passa de um mero pesadelo. Uma fantasia criada pelo meu ego, apenas para lidar com tudo isso.” pensou.

E por fim, buscou tentar não existir mais uma vez e descansar.

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⏰ Última atualização: Jul 28 ⏰

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