Prólogo

17 3 2
                                    

Sinto-me entorpecido.

O cheiro a desinfetante é a única coisa que me faz sentir que o que está a acontecer é real. Consigo ouvir claramente os bipes das máquinas e os passos no corredor. No exterior, estou certo de que os media estão a provocar um alvoroço, com as perguntas habituais. Os médicos e os enfermeiros estão atarefados com os ferimentos e a polícia está a dar-me algum tempo, mas sei que em breve virão falar comigo.

Olho pela janela do quarto em direção ao corredor e observo a família que aguarda na sala de espera. Não consigo desviar o olhar da rapariga que lá está. Está totalmente deslocada ali. Usa uma camisa branca com um laço e umas calças pretas de fato, como se tivesse acabado de chegar de um serviço de catering. O cabelo dela está apanhado num coque e não dá para perceber se é louro-escuro ou castanho-claro. A maquilhagem esborratada e os olhos raiados são os únicos detalhes que dão cabo do seu aspeto arranjadinho. Pergunto-me se estará aqui pelas mesmas razões que eu.

Desvio-me ligeiramente da janela para que não me possa ver, pois temo que me reconheça.

Alguém pigarreia atrás de mim e eu pestanejo, afastando as lágrimas que ameaçam sair.

- Quando é que falaste com ele pela última vez? – pergunta – me a minha mãe, chorosa.

- Não sei ao certo, acho que ontem depois das aulas.

Ergo os olhos, preparando-me para mais questões, quando ouço o chocalhar de uma maca a aproximar-se no corredor.

- A polícia encontrou alguns comprimidos e garrafas vazias no carro – comentou a minha mãe na sua voz suave.

Não reajo.

- Sabias que andava a consumir?

Abano a cabeça.

- Não havia marcas de travagem...parece que ele... – ela interrompe-se, não conseguindo terminar a frase.

Eu sei exatamente o que ela ia dizer. Não houve uma lágrima por parte dele, uma demonstração de preocupação ou de medo. Nada. É a reação de um completo desconhecido.

Rodo a cabeça e olho – a nos olhos. Engulo em seco e tento disfarçar o nó que sinto na garganta.Com tudo o que o meu pai nos fez passar ao longo dos anos, pouco me poderia impressionar. Mas parece que o subestimei.

- Eu faço-o – digo.

Ao fim de alguns minutos vejo a minha mãe a sair da divisão e avançar em direção à porta do hospital.

Finalmente, permito que uma lágrima solitária me escorregue pela face e preparo-me para o que aí vem.

Tudo aquilo em que nos tornamosOnde histórias criam vida. Descubra agora