Assim como os céus, ele também chovia

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"Quando você perde tudo o que amou, às vezes a dor pode voltar para arruinar os pequenos momentos bons que restam. O luto é um assassino silencioso, à espreita na escuridão da alma, pronto para encobrir qualquer luz com sombras."

                    -O Lorde da Noite Eterna
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Os céus se agigantavam sobre a pequena ilha de Mints, engolindo qualquer coisa que estivesse em seu caminho, os pingos furiosos da chuva esmagavam àrvores e casas. Pequenas embarcações afundavam e surgiam em meio ao mar revolto...
A tempestade perdurou por doze horas seguidas, como um sinal da finitude das coisas.

Ninguém se atrevera a sair de casa debaixo daquele temporal, a cada trovoada, raios partiam os céus aterrorizando quem quer que estivesse sobre o temporal tenebroso...

Mas havia uma pessoa caminhando sobre a areia da praia, indiferente as explosões furiosas da tempestade. Usava uma túnica simples, diferente das roupas de outrora, os cabelos pendiam frouxos em um coque simples...

Ele encarou o horizonte e olhou para aquela pequena cabana, um meio sorriso formou-se em seu rosto, mas havia certa tristeza guardada ali.

Pois assim como os céus tempestuosos de Mints, Neuvilette também chovia.

O lugar cheirava a mofo e barro molhado, curiosamente a pequena cabana seguia protegida por aquela força espiritual que foi derramada ali.

Tudo estava igual.

A pequena cama de bambu. Onde eles se enrolavam para ouvir histórias de terror. Onde monstros saiam para devorar humanos inocentes e assombrar pequenas vilas e cidadezinhas.

A mesinha com dois copos, apenas um permanecia de pé, a chaleira jazia ao lado, fria. Ele fechou os olhos desejando transportar-se para uma época, onde as coisas eram mais simples...

Sentou-se em um banquinho ao lado da mesa e fechou os olhos, esfregando as têmporas, permitindo-se afundar nas lembranças de séculos atrás...

***
Naquela manhã Wriothesley acordou animado, como parecia estar todos os dias.

-Neuvillette! Neuvillette! -o outro abriu os olhos sonolentos e encarou aquele rosto sorridente.

-Já estou me levantando. -Seus cabelos estavam bagunçados, e o outro soltou uma gargalhada e tocou seus cabelos arrumando-os. Ele apenas pensava que seu amigo conseguia ser muito atraente mesmo em situações inusitadas.

-Vamos! Vamos! Não devemos nos atrasar. O seu chá está na mesa.

Neuvilette se levantou e sentou-se sobre a cadeira de bambu, tomando a xícara entre as mãos e absorvendo o aroma do chá.

-Obrigado, Wriothesley. -O outro sorriu.

-Acha que conseguirei impressioná-los com minha força? -Perguntou refletindo profundamente sobre isso.

Naquela época do ano, em meados da primavera os sentinelas de Mints faziam um teste de força bruta e habilidades físicas, com os garotos mais promissores, para escolher seus aprendizes e os futuros conselheiros e protetores de seu governante.

-Tenho certeza que sim, não conheço ninguém mais forte do que você. - disse honestamente.

-De todo modo, não é como se você conhecesse muita gente. -o outro franziu o cenho.

-Não faça essa cara! Preciso do seu apoio. -Wriothesley disse se aproximando do amigo.

-Você não está se mostrando muito grato com ele. -Neuvilette bebericou o chá.

-Eu prometo que vamos ter uma vida melhor e você nunca mais precisará passar por aquilo de novo.

O outro o encarou com olhos profundamente emocionados.

-Ah não, não precisa chorar! Enquanto você estiver comigo, vai ficar tudo bem.

Neuvilette não gostava de lembrar. Na época ele não conhecia muitas pessoas, por que era diferente, não de uma forma boa ou atrativa.
Todos tinham medo dele, sua conexão com a água ia além do que os magos daquela época poderiam explicar, e tudo que não pode ser explicado, acaba sendo temido e condenado ao isolamento pelos demais, às vezes pior.

Quando aconteceu, eles ainda viviam em um pequeno orfanato sem nome, juntos com mais outras nove crianças. A regência da época se encontrava em decadência e os pobres acabavam sendo deixados à margem da sociedade, deste modo as provisões eram mínimas e as crianças acabavam não possuíndo o apoio necessário para os estudos e muitas vezes sequer possuíam uma refeiçao adequada.

Mas os garotos não eram ingratos, eles trabalhavam juntos para manter o pequeno lar ativo, ainda que com poucos recursos.

Todavia, a maré começou a subir frequentemente, desafiando os ciclos lunares. As chuvas também se tornaram fortes e cada vez mais comuns. Não demorou muito para que o diretor do orfanato e as outras crianças, associassem as castrastoófes ao garoto estranho com poderes de água.

Aquela foi a primeira vez que ele se sentiu verdadeiramente sozinho e com medo...

Mas aquele garoto de cabelos escuros e sorriso confiante nunca deixava de segui-lo.

Suas frases eram sempre as mesmas...

Não posso deixar você sozinho, você não vai sobreviver...

Você é bem forte, mas também é fraco e não sabe lidar com as pessoas...

Com o tempo, ele aprendera... Mas nada mudava o fato de que o que ele mais desejava era ver aquele sorriso de novo ali.

As memórias pareceram flutuar para longe e Neuvilette despertou rapidamente de seu devaneio.
Ele observou o bule vazio e colocou um pouco de água para aquecer no fogão pequeno, alguns pedaços de madeira repousavam intocados durante anos e eles os colocou, deslizou os dedos pelo ar magicamente e uma chama suave se acendeu.

Deslizou a mão para dentro da pequena bolsa que carregava e retirou um pequeno sachê, colocou o suficiente para duas pessoas, e sentou-se diante de um lugar vazio.

Esperando... Esperando...

Estivera esperando por 500 anos.

Todos os anos ele vinha para o mesmo lugar e esperava aquele que estivera com ele durante toda a sua vida e o único a quem amara...

O líquido quente aqueceu seu estômago.

Neuvilette suspirou.

-Eu queria... -Ele começou, mas as palavras permaneciam presas em sua garganta e pareciam irreais, como se tudo alí fizesse parte de um sonho.

Não um sonho bom.

Nos seus sonhos bons, Wriothesley sempre estivera presente.

-Eu queria que você estivesse aqui... -Suspirou profundamente pensando que de que lhe servira alcançar a glória e a tão sonhada aceitação entre os povos, se aquele a quem mais desejou que estivesse ao seu lado naquele momento havia partido?

-Sinto sua falta... Por favor... Se ainda está aqui... Me dê um sinal. -o lugar permaneceu quieto, apenas o som das folhas agitando-se no lado de fora da cabana permanecia.

-Onde você estiver, eu irei... Para buscá-lo. -Depois de alguns minutos esperando ele levantou-se e partiu, sabendo que voltaria no próximo ano... E no próximo depois deste, como fizera por 500 anos e continuaria a fazer enquanto ele vivesse.

Um estrondo o fez perder o equilíbrio, e ele se pôs em vigilância, uma sombra moveu-se sobre ele, alguém -ou algo- estava ali.

O Oceano Sagrado e a Máscara da DorOnde histórias criam vida. Descubra agora