A Rainha tinha partido na noite anterior para uma visita diplomática às Terras Pantanosas, o que significava duas coisas: se as estradas não estivessem tão inundadas (o que ele duvidava, afinal os céus da Capital torciam com trovões há vários dias e a tenebrosa cidade vizinha era propensa a alagar com certa facilidade), a viagem duraria umas duas ou três semanas. E a segunda e mais importante das coisas: durante esse período, ele seria o Regente, algo que sempre enchia o seu peito de alegria em pensar que todas as principais decisões do Reino de Vesta estariam em suas mãos.
Sentado diante da escrivaninha, Samael corria os olhos pelo papel amarelado pelo tempo com voracidade, prestando pouca atenção aos escritos, mas tentando fixar na cabeça os principais pontos da mensagem que chegara há poucas horas. As três ou quatro lamparinas dispostas ao redor não iluminavam o cômodo com eficácia, mas eram o suficiente para destacar as letras mal escritas dos seus informantes do outro lado do mar que, embora úteis, pareciam tão ignorantes quanto os habitantes do Bosque dos Ruídos.
Pior ainda, Samael pensou. Isso está tão ilegível que parece uma escritura do povo dos Campos de Pedra... Se
bem que seria engraçado imaginá-los escrevendo.
Quebrando o silêncio que se derramava pelo cômodo, exceto pelos trovões rugindo lá fora, três batidas aflitas levaram a sua atenção à porta. A primeira reação de Samael, obviamente, foi xingar quem decidiu importuná-lo àquela hora, a segunda foi dobrar rapidamente o papel e escondê-lo em uma gaveta na parte debaixo da escrivaninha, embaixo ainda de mais uma pilha de papéis. Seu impulso foi jogar a mensagem no fogo, o que estava escrito ali era grave demais para correr o risco de se tornar público, mas ainda precisava dar mais uma lida e se certificar de que nenhuma informação importante havia ficado para trás.
Ao abrir a porta, a surpresa logo se estampou em seu rosto.
Do lado de fora e completamente encharcada, estava a Bibliotecária do Acervo Privado da Capital. Ele já tinha esbarrado com a mulher algumas vezes pelos corredores e vielas da cidade, mas não o suficiente para justificar uma visita inesperada como aquela no meio da noite ou que a fizesse enfrentar uma chuva torrencial como a que lavava a Capital.
Samael a observou em silêncio enquanto a Bibliotecária deixava uma poça d'água diante da porta dos aposentos. Ela respirou fundo, abraçada contra as próprias roupas, como se tentasse inutilmente evitar o frio.
— Senhor Regente — ela disse com a voz arfante. Devia ter corrido até ali e nada além de algo extremamente sério seria capaz de convencer os guardas a deixá-la chegar ao cômodo particular. — Eu precisava falar com a Rainha, mas como ela não está na Capital, procurei o senhor imediatamente.
— E o que seria tão urgente?
Um passo separava os dois, mas Samael conseguia sentir a respiração quente da Bibliotecária atingi-lo.
— Não tenho certeza... — ela respondeu. — Mas se for...
A Bibliotecária afastou as roupas e então mostrou o que trazia abraçado dentro das vestes. Era um livro. Um livro imenso, o maior livro que Samael já tinha visto em toda a sua vida.
— Ele estava em um baú no subsolo do Acervo, escondido no meio de pilhas de papéis tão velhos que a maioria se desfez com o mínimo toque.
Samael não disse nada, mas podia jurar que, quando tocou o livro, todos os pelos do seu corpo se arrepiaram, como se um vento muito gelado tivesse subitamente se derramado pelo corredor onde os dois permaneciam encarando o artefato. Era muito pesado e, embora não houvesse nenhuma inscrição na capa de couro, Samael sentiu que aquele realmente não era um livro comum.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Memória do Mundo, Yuri Rebouças (degustação)
FantasyDez anos atrás, um grupo de feiticeiros acidentalmente causou o fim da magia em Telris. Criaturas morreram de um dia para o outro, cidades inteiras foram dizimadas e algumas desapareceram como se nunca tivessem existido. Uma década depois, as conseq...