V - Fábrica de Tecidos de Codó

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Fábrica de Tecidos, Codó – Maranhão, 04 de dezembro de 1921.

Conceição transita entre o mundo físico e espiritual, se vê de cima, seu corpo está pálido, frágil e empapado de carmim, sombras parecem descer pelas paredes e porta, ameaçando engoli-la; Nazaré canta algo que ela não reconhece, demarcando o único espaço seguro no recinto. Cenas do seu passado passam a ser vistas como em um looping.

O orfanato em que cresceu. As freiras que se revezavam nos cuidados do corpo e da alma. A disputa pelos colos e afagos. O coração palpitante sempre que uma família adentrava o pátio buscando uma criança para adotar. A inevitável dor quando eles partiam sem trocar nada mais que um olhar e sorrirem condescendentes para ela. Ouviam diariamente que deveriam ser comportadas, belas, talentosas e que assim encontrariam a família que Deus lhes reservara.

Conceição esforçava-se para ser excelente em tudo. Desde pequenina suas roupas e cama sempre eram usadas como exemplo para outras crianças, isso rendia admiração das irmãs e alguns agrados, mas também perseguição das demais órfãs. Se destacava no coral, com sua voz doce e ritmada. Porém, seus esforços não frutificavam, os pais enviados por Deus nunca chegavam.

Ingressou na puberdade com a certeza de que em seus pés, tal qual Caim, carregava a marca da maldição. E permaneceria nessa crença se Firmino não tivesse aparecido. Através dos olhos dele sentia-se bela. Em seus braços descobriu que o corpo não é um fardo, mas uma benção. Sua voz rouca espantava os fantasmas do passado. Seu cheiro despertava sensações viscerais. Em sua boca ela se deleitava e derretia. Durante três anos foi inundada pelo amor e quase esqueceu de sua sina mórbida.

Todos os meses, durante seu ciclo lunar sentia fortes cólicas e perdia grande quantidade de sangue por dez dias ou mais, ficava lívida, exausta e irritada. Mesmo assim, apesar da dor pungente que se estendia em raios por seu corpo, se forçava a levantar da rede e cumprir com seus afazeres. Em consulta com Mãe Meroca foi lhe dito que após ter o primeiro filho melhoraria; passou a tomar uma infusão de ervas, que aliviava sua dor e limpava o útero.

Conceição confessou à curandeira que não desejava engravidar; não era a primeira vez que Meroca ouvia tal afirmação e ensinou-a a acompanhar seu ciclo, evitando ter relações no período em que o muco se assemelhava à clara de ovo, pois é quando a mulher está mais propensa para engravidar. Essa era a parte mais difícil, pois Firmino era fogoso e sentia no ar o cheiro de desejo.

Conceição não negava nada ao marido, pois seu corpo gritava pelo prazer que apenas ele conseguia proporcionar. Nessas ocasiões, seguindo a recomendação de Meroca, após a relação, ela se lavava com vinagre e tomava chá de buchinha e canela até que o sangue descesse.

Firmino não imaginava seus estratagemas, pois ansiava por uma criança que tivesse seu rosto e a cor de Conceição. Queria ser chamado de pai, amado, admirado e respeitado como Seu Fubá era. Todos os meses, quando as regras de Conceição vinham, seu semblante se anuviava e ele se tornava distante e ranzinza, como se aquele vermelho no tecido representasse que não era homem suficiente para ter uma descendência.

Porém, havia Luzia, o que, em sua cabeça, comprovava que o problema não era ele, mas sua esposa; talvez ela tenha ficado 'seca' depois da Gripe Espanhola, era uma de suas conjecturas.

Certa noite Conceição teve um sonho, em que estava dando à luz a uma garotinha; enquanto levava a criança ternamente ao seio, o bebê foi arrancado de suas mãos e estraçalhado por uma sombra. Acordou desesperada na rede de algodão, em sua casa de pau a pique. Firmino ressonava na rede ao lado. Levou a mão à barriga, fez a recontagem dos dias desde a última regra e concluiu assombrada que estava grávida. Não voltou a dormir.

A mulher de Pés de SapoOnde histórias criam vida. Descubra agora