"Um passo seguido do outro. O mesmo ritmo, o mesmo compasso. Um movimento apressado e constante, levando-a para a direção correta, sempre no mesmo sentido. O tempo gasto para chegar até o ponto de ônibus era o mesmo de todos os dias. Ao seu redor, os mesmos sons de sempre, os mesmos cheiros. Motores de carros, gritos de vendedores ambulantes, o odor de borracha queimada misturada no asfalto, o diesel queimando. Tudo tão familiar e, ainda assim, assustador."
- Ei, moça! Vai subir ou não vai?
A voz do motorista do ônibus invadiu meus pensamentos e tornou meu mundo real, de repente. Eu o encarei e me desculpei rapidamente antes de subir os degraus. Passei a catraca e fiquei feliz por encontrar um lugar para sentar. Consegui um próximo da janela e em segundos eu estava novamente isolada em mim mesma. Olhei para o vidro e me vi.
"O reflexo na janela parecia pensativo. Delineava seu perfil enquanto deixava os raios solares atravessarem o vidro. Outros rostos surgiam próximos ao dela, refletidos no vidro e sumiam de acordo com a luz. Rostos embaçados ou borrados. Rostos que passavam pelo corredor atrás dela sem notar nada além de si mesmos. Rostos que estavam concentrados na própria missão. Todos menos um."
Um novo intruso invadia meu mundo e me forçava a voltar para a realidade. Pelo reflexo, que agora continha vários rostos e não apenas o meu, eu observei o intruso. Era o reflexo de um rosto masculino, com cabelo escuro e óculos de aro fino, de onde seus olhos me encaravam curioso. O desconforto habitual da minha personalidade introvertida se ampliou. Meu coração acelerou um pouco e vários possíveis cenários se desenrolaram na minha mente.
Ele podia ser apenas um curioso, podia ser uma pessoa perdida decidindo se pedia informações, podia ser um psicopata escolhendo sua próxima vítima. Eu não sabia e não estava querendo descobrir. Eu só não queria ser observada. Senti minha respiração falhar e voltei a olhar pela janela. Dessa vez prestando atenção nas ruas e placas que passavam do lado de fora. "Eu estava chegando? Quanto tempo até poder descer"
Reconheci o quarteirão da minha escola. Lá, eu estaria segura. Lá, eu não precisaria especular as possíveis histórias por trás do intruso que me encarava. Prendi a respiração, levantei sem olhar para ele e andei rápido até a porta.
Houve uma movimentação rápida, mas não tive coragem para virar o rosto naquela direção. Eu estava indo para a escola, eu ficaria segura em alguns minutos. Desci as escadas do ônibus e foquei no som do meu tênis batendo no chão. Um passo depois do outro, eu estava chegando, logo estaria na sala, logo poderia me recolher dentro de mim mesma de novo.
Cheguei ao meio fio. Só precisava atravessar a rua e estaria tudo bem. Segui em frente e então ouvi a sequência de barulhos que mudou a minha vida. Fechei os olhos instintivamente no momento em que o guincho estridente de freios foi liberado, duas buzinas diferentes tocaram e uma derrapagem se misturaram com o forte cheiro de borracha queimada. Fui arrancada do meu mundo novamente, dessa vez por um puxão no meu braço. Senti a dor do movimento, seguida pela dor do impacto do meu quadril no chão. Quando abri meus olhos me deparei com um homem dentro de um carro, gritando desaforos, enquanto passava no ponto em que eu deveria atravessar a rua. Alguns rostos de adultos curiosos se aproximaram e eu voltei a ter consciência de que uma mão ainda apertava meu braço.
Olhei para a mão e segui o caminho do seu braço até o corpo e o rosto da pessoa que me segurava. O olhar preocupado, expresso através de lentes de óculos, e emoldurado por fios escuros do intruso me encaravam. Eu me afastei por instinto e ele me soltou, para em seguida me ajudar a levantar. Foi quando notei sua roupa. Era o mesmo uniforme que o meu.
Eu voltei a encará-lo, dessa vez para realmente enxergá-lo.
- Você está bem? – ele perguntou.
- Estou. – respondi no automático. – Você estava no ônibus.
- Sim. – ele sorriu, ficando tímido de repente. – É meu primeiro dia. Fiquei olhando você para saber o ponto certo de descer.
- Você não é nada discreto.
Ele pareceu desconcertado com o que eu falei e coçou a nuca antes de responder:
- Desculpe. – para, então, sorrir sem graça. – Mas isso acabou sendo bom. Salvei sua vida.
Eu o encarei, processando a informação. De repente, eu estava completamente fora do meu mundo e estava vendo a história pelos olhos de outra pessoa. Eu vi tudo o que aconteceu nos últimos minutos como em um filme, no qual eu era uma personagem bastante imprudente. Ele REALMENTE salvou a minha vida. Aos poucos meus lábios formularam um sorriso, que pareceu aliviá-lo, pois ele espelhou em um sorriso próprio.
- Obrigada. – eu disse.
O sorriso dele aumentou e, até hoje, quando ele conta essa história para os nossos filhos, diz que foi o "obrigada" mais demorado que ele já recebeu na vida.
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Contos peculiares
Short StoryVocê já sentiu que alguma característica sua fosse peculiar demais para contar a alguém? E se alguém pensou o mesmo que você mas resolveu transformar suas peculiaridades em pequenas histórias? Essa coletânea de micro contos reúne uma série de histór...