Cinco

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Atados às chamas, os herdeiros do Sol hão de surgir sob a mais profunda escuridão. Reinarão sobre os demais com a serenidade e sabedoria de Leam, ou queimarão os opositores com sua tirania e brasa


O Sol ardia forte e imponente sobre o vale, trazendo uma onda calorosa de forma inesperada. Stella abriu os olhos, mirando o céu azul ainda um pouco confusa. Nada? ela pensou, passou as mão no rosto e não havia uma gota de suor, seque estava ofegante. Era claro que havia inevitavelmente cedido ao cansaço e desmaiado no meio da noite, mas no fundo, já esperava ser atormentada pelo mesmo sonho que a aterrorizava desde que havia iniciado sua viajem.

Quípor estava embolado num cobertor próximo a fogueira já apagada, dormindo com tranquilidade invejável, mesmo que estivessem consideravelmente expostos. Fomos bem idiotas, pensou a garota, observando com mais calma os arredores, imaginando diversos pontos cegos e os tipos de animais que poderiam facilmente chegar até eles, e mesmo que tentasse se preocupar mais, seu alívio era maior e logo seus dedos repousavam sobre o pingente, leves.

Conferindo a mochila, Stella deduziu que havia suprimentos para pelo menos aquela manhã, mas não o bastante para chegar à capital, então, aproveitando que Quípor ainda dormia, pegou emprestada uma adaga, presa a alça da mochila do rapaz. Era um objeto bonito aos olhos de Stella, mas não fazia seu estilo no combate. Uma adaga feita de um fêmur, cuidadosamente detalhada com alguns adornos únicos, representando cada grande caça da família de Quípor, desde o primeiro patriarca de sua linhagem. Você tem muita sorte mesmo.

Stella não precisou ir muito longe, para encontrar os primeiros sinais de algum animal, diferente do que havia presenciado por quase toda a jornada até ali. Não havia muita paciência em seus movimentos, mas o pouco que sabia já ajudava a se aproximar, se colocando em posição para que o vento leve seu cheiro em direção oposta, e seus passos sejam abafados pela grama baixa que havia ali.

Seus olhos carregavam um brilho diferente naquele dia, como se os raios de Sol ressoassem em harmonia com o âmbar, e estes mesmo olhos se fixavam em sua presa. Cerca de cinquenta metros separavam o animal de sua perseguidora, que tentava cada vez mais encurtar a distância, firmando o cabo da adaga em sua destra, preparada para a investida.

A criatura parecia se alimentar de frutinhas em um grupo de pequeninos arbustos, e era fácil reconhecer que era um javali montês, os dois amigos já haviam visto um pequeno grupo antes, mas este estava sozinho, talvez seguro de que não havia nada por perto, mas Stella não subestimaria assim os instintos de um animal, por mais distraído que parecesse. Observando um pouco mais, percebia que era um pouco menor do que os que já havia visto. Um filhote? Stella não abriu muito espaço para seus pensamentos, estava próxima o bastante para uma investida que considerava segura, tomando um instante a mais por trás de um uma pedra, antes de avançar. Seus músculos vibraram em uma explosão de força imediata, Stella havia cortado cerca de cinco metros de forma rápida o bastante para se impressionar com o próprio desempenho, mas ainda havia trabalho a fazer, e com um movimento decrescente do braço a adaga perfurou a carne próxima a nuca do animal, abrindo caminho pelos músculos com facilidade.

Talvez fosse pela inexperiência da jovem com aquele tipo de arma, ou quem sabe sua pressa, ou simplesmente o ímpeto do animal por sobreviver, mas fato é que a criatura ainda estava viva, e seu grunhido bizarro perturbava os sentidos de Stella. Num segundo de descuido, a criatura havia disparado tão rápido como uma flecha, sacodindo seu corpo ferozmente como se tentasse espantar algum inseto.

Por sorte a adaga ainda estava firme nas mão da jovem, mas seu maior problema se tornava a investida da criatura, retornando impiedosamente em direção a jovem, mirando suas, ainda pequenas, presas como quatro pequenas lanças. Havia certa facilidade na formo em como Stella evitava as tentativas irracionais de ataque do animal, forçando seu corpo de um lado a outro, saltando por cima do javali, provando toda sua vantagem naquele momento, deixando com que a criatura chegasse à exaustão, ainda que parecesse ser algo demorado de se acontecer.

Em meio aos grunhidos e investidas da criatura, de diferentes pontos vinham respostas ferozes e cada vez mais próximas. Não estava tão sozinho assim. Stella tinha certeza de que havia um grupo vindo naquela direção, e seu descontentamento consigo mesma era óbvio. Poderia ter sido com uma estocada só. E seus pensamentos mesclavam irritação com medo, não sabia como lidar com um grupo inteiro de javalis com apenas uma adaga, não se via fazendo algo assim sem suas chamas ou algum esforço, e Quípor além de distante, não teria arma alguma para auxiliar. Muito bem, idiota.

Como que em uma armadilha, Stella logo se viu cercada por cerca de oito javalis monteses, pelo menos o que pôde contar em meio a investidas e saltos. Seus corpos eram musculosos e claramente maiores do que um simples javali, além da pelugem espessa e presas enormes, quase do tamanho de suas cabeças. O tempo se arrastava em meio aquele desastre, os javalis eram tão brutos que chegavam a se chorar uns contra os outros, mas nada que fizesse cessar a vingança voraz contra a "caçadora".

Mesmo com seus sentidos afiados, Stella penava cada vez mais para continuar esquivando e tentando contra-atacar, levando até mesmo alguns arranhões das presas que passavam de raspão em meio às investidas. Quase como se uma âncora batesse contra suas costelas, Stella era arremessada para o lado, empurrada pela investida que enfim a atingiu em cheio, já exausta de mais para continuar com seus saltos e esquivas. Imaginou que a dor seria maior, ainda que o peso do javali ainda parecesse permanecer ali, como se seu corpo fizesse questão de manter viva a sensação.

Os grunhidos selvagens tomaram conta do ambiente como um uníssono feroz, impiedoso sobre o medo crescente de Stella. Não havia local em sua vista que pudesse servir de rota de fuga ou abrigo, pelo menos não com o cansaço que sentia. Seus olhos mantinham o brilho curioso de antes, mas não servia para causar efeito algum nos animais, e logo que se forçava a fica em pé, "BAM!", outro impacto a levava ao chão, tão forte quanto o primeiro, e novamente os javalis grunhiam triunfantes. Stella se recusava a ficar no chão, e ao mesmo tempo receava ser atingida pelos animais, agradecendo a sorte de não ter sido perfurada pelas presas, de alguma forma.

Sentiu uma pontada de esperança quando, sobre os grunhidos dos animais, veio uma voz familiar, gritando ao longe. Quípor. Por um segundo ela sorriu, e fechou a destra com força, percebendo então a falta da adaga que havia trazido para a caçada, deixando o sorriso para trás.

O rapaz trazia consigo um galho longo com a ponta envolta por um tecido em chamas, brandindo a frente de seu corpo numa tentativa vã de enxotar os animais. A distração foi o bastante para que Stella pudesse, pelo menos, se levantar, tentando ignorar a dor e pensar em algo, agora que havia arrastado o amigo para o problema.

Não me deixem na mão. Stella estalou os dedos, mirando suas mãos em direção aos javalis, atentos ao recém-chegado, mas foi em vão, nem mesmo faíscas surgiram. Por quê?!

Novamente ela estalou os dedos, mas desta vez sequer saiu som, foi uma falha completa e, talvez pelo puro instinto, os javalis partiam em direção ao rapaz, assustado, porém firme em seu plano.

Não são como camurças, seu idiota. O medo foi crescente em Stella, e só pôde correr, forçando seu corpo o mais rápido que conseguia para fazer o que quer que fosse para consertar o problema. Seus músculos pela primeira vez em muito tempo já doíam, seus olhos se fechavam enquanto se esforçava, era questão de segundos até que Quípor estivesse ao alcance dos animais, mais frágil e menos ágil que Stella. Parecia como uma brincadeira sádica para Stella, impotente e assustada, agora imersa em sentimentos com os quais não sabia lidar, e prestes a ser responsável pelo que poderia ser fatal ao melhor amigo.




Os herdeiros do Sol carregarão consigo a primeira chama, e dela moldarão o mundo à sua vontade.

Coroa Sangrenta - Aço e FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora