Prólogo

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A solidão é como um pássaro ferido

 que voou, mas está perdido, 

sem saber a direção.

Oswaldo Montenegro

🪞

Sangue escorria de sua cabeça como belas cascatas carmesim que manchava sua visão enquanto se esforçava para correr e não gritar toda vez que seu pé encostava no mármore gélido e escorregadio. O corredor que a muitos anos atrás estava sempre sujo de terra e brinquedos espalhados, naquela madrugada encontrava-se manchado por seu líquido vital.

A porta de entrada estava sendo esmurrada com total irá, não importava quão reforçada o material fosse, aquela maldita pessoa conseguiria entrar, sempre conseguia.

O gemido angustiante da dor não conseguiu mais ficar preso em sua garganta quando ele tombou nos primeiros degraus da escada. Sua perna latejava e sua visão ameaçava escurecer a qualquer momento.

Usar a perna não adiantaria, então começou a se arrastar intermináveis degraus acima, sempre odiou aquela escada estupidamente longa demais que sempre lhe fazia praguejar quando menor, suas pernas curtas na época ardiam e tremiam quando fazia aquele trajeto.

Ouviu a porta debaixo fazendo um rangido alto quando o metal foi de encontro a ela mais uma vez, não duraria muito mais tempo.

Sua mente rondava todo o ambiente tentando de alguma forma arranjar um jeito rápido de fugir daquela situação, mas com a casa a tantos anos abandonada e suas portas e janelas lacradas era impossível, ele sabia.

Sabia que não sairia dali naquela noite, não sairia nunca, ele sabia.

O choro cortado não ficou mais preso somente em sua garganta quando chegou ao topo da escada e se arrastou até o peitoril, encostando a cabeça na madeira velha e descamada ㅡ antes tão viçosa e bonita. Ali deixou que seu rosto não ficasse manchado apenas com a água da chuva e com seu sangue, agora suas lágrimas salgadas faziam parte da enorme bagunça que havia se transformado.

Sua perna latejava e jorrava cada vez mais linfa das enormes perfurações que foram deixadas em sua carne violada. Não sabia se morreria pela falta de sangue em seu corpo ou se teria o azar de ainda estar vivo quando aquilo lhe alcança-se, sinceramente esperava que a primeira opção vencesse.

Agarrou o aparelho celular trincado com as mão trêmulas, não podia deixar que aquelas informações morressem junto de si, não deixaria seu esforço ser em vão, não podia.

Gravou uma curta ㅡ mas significativa ㅡ mensagem de voz e a guardou junto de todas as outras provas, ele encontraria, tinha que encontrar. Bateu o aparelho no chão liso várias vezes com toda a força que lhe restava até ter certeza que estava danificado o bastante e o jogou em qualquer canto.

Olhou por entre as aberturas do peitoril quando ouviu o barulho da porta cedendo, já havia conseguido entrar e seria questão de tempo para que lhe alcançasse finalmente. Não se deixaria sucumbir por aquelas mão sujas, aquelas mãos que tanto um dia lhe passaram segurança, que lhe acolheram e que hoje lhe traía.

Sabia o que tinha que fazer.

Usou todo o resto da pouco força que ainda havia em si e se levantou, agarrando na madeira fria. Olhar para baixo ainda lhe causava náuseas, da mesma forma de quando era criança, sempre achou desnecessário que o segundo andar daquela casa fosse tão alto.

Odiava altura.

O corpo molhado que tanto conhecia se materializou no primeiro andar e travou ao observar o rapaz no andar de cima, parecia saber o que estava pensando. Mais lágrimas desciam desenfreadas pelo rosto pálido, ele estava com medo, apavorado. Queria voltar para sua casa, deitar em sua cama quente, talvez terminar o livro que a tanto tempo estava esperando em cima de sua escrivaninha. Talvez mandasse outra carta para seu irmão, não, dessa vez deixaria toda sua covardia de lado e ligaria para ele. Se não lhe atendesse iria atrás dele, isso mesmo, é o que faria. Ele só precisava de mais tempo.

Merda, ele só precisava de mais tempo!

Mas o tempo era a última coisa que ele tinha, e quando percebeu a outra pessoa correr a toda velocidade escada acima sabia que todo o tempo que desejou ter havia se esgotado naquele momento.

Fechou os olhos e tombou seu corpo para frente com força, sem dar tempo de sua mente lhe frear. Sem tempo para arrependimentos, sem tempo para lamúrias, sem tempo para o medo.

A última coisa que ouviu foi um grito alto chamando seu nome e depois tudo foi tomado em escuridão.

Espelhos PartidosOnde histórias criam vida. Descubra agora