O maior amor do mundo todo

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A noite caía em um ritmo lento, como se o universo estivesse a sós com as duas, permitindo-lhes um último momento antes que tudo se tornasse memórias dolorosas. A chuva tamborilava suave nas janelas do carro estacionado em frente à praça deserta. Isadora apertava o volante com força, os nós dos dedos brancos sob a luz fraca dos postes, enquanto sua mente se agarrava desesperadamente ao presente, ao momento em que Julia ainda estava ali, ao seu lado.

Julia, com os cabelos molhados caindo sobre os ombros, olhava para fora, para a rua vazia que parecia estender-se infinitamente na escuridão. O silêncio entre elas era denso, carregado de palavras não ditas e sentimentos sufocados. Aquela era a rua onde elas costumavam caminhar após os treinos, o mesmo lugar onde, anos atrás, deram o primeiro beijo. Tudo ali era impregnado de lembranças. Agora, cada lembrança era uma ferida aberta.

Isadora suspirou, sentindo o gosto amargo do álcool ainda queimando na garganta. O copo, agora vazio, descansava no console entre elas, um testemunho silencioso da noite tumultuada que haviam compartilhado na festa. Era como se o álcool a tivesse transportado para um estado onde o passado era tão vívido quanto o presente, e Julia era mais uma vez sua.

— Eu juro, eu não te amo, eu só bebi demais... — As palavras escaparam dos lábios de Isadora como uma confissão, uma mentira repetida tantas vezes que quase acreditava nela. Ela sabia, no fundo, que não era o álcool que a fazia sentir assim. Era Julia, sempre seria Julia.

Julia virou-se lentamente, seus olhos encontrando os de Isadora. Eram olhos que um dia dilataram de paixão, agora distantes, como se um abismo se abrisse entre elas — Não precisa dizer isso, Isa — Disse Julia, a voz suave, mas carregada de resignação — Eu sei.

O dragão tatuado nas costas de Isadora, algo que Julia conhecia tão bem, agora parecia uma lembrança cruel de tempos melhores, de noites em que seus corpos se encontravam na escuridão do quarto, onde o mundo exterior não importava. Julia se lembrou de todas as vezes que desenhou os contornos daquela tatuagem com os dedos, como se pudesse gravar na memória cada detalhe, cada linha, como uma maneira de manter Isadora consigo para sempre.

— Eu era sua vida, Ju — Isadora sussurrou, a voz quebrada. —Agora, vou ser apenas uma lembrança.

Julia assentiu, uma única lágrima deslizando pela bochecha — Nós éramos tudo, Ju. O maior amor do mundo todo —  Ela fechou os olhos por um momento, como se isso pudesse aliviar a dor que parecia consumir as duas — Mas a gente se perdeu. Eu me perdi.

Isadora sentiu o aperto no peito aumentar. Como elas chegaram até ali?

O amor delas era intenso, impulsivo, tão equilibrado e preciso como uma pirueta bem executada. Elas se entendiam em uma linguagem que dispensava palavras, comunicando-se com olhares e toques. Isadora sempre soube exatamente como fazer Julia sorrir e Julia sempre conseguia acalmar Isadora nos momentos de ansiedade antes das competições.

Lembrou-se dos treinos exaustivos, das competições, dos sacrifícios que ambas fizeram pelo esporte que amavam. Ginástica era tudo para elas, e ao mesmo tempo, foi o que começou a separá-las. A pressão, as viagens constantes, a necessidade de ser perfeita em tudo, as brigas surgiram, pequenas faíscas que se transformaram em incêndios, críticas sobre uma rotina mal executada, palavras ditas no calor do momento, uma expectativa não correspondida. Aos poucos, o amor delas se tornou outra coisa a competir, outra obrigação e a mágoa cresceu como erva daninha, sufocando o que um dia foi tão belo.

As palavras de Julia ecoavam na mente de Isadora, a última conversa que tiveram antes de tudo desabar enquanto estavam deitadas no quarto da garota. O mundo está nas suas mãos, meu amor. Não deixe escapar.

Ela deixou escapar.

Isadora tinha deixado seu mundo escapar.

— Deixei escapar, Ju. O mundo estava nas minhas mãos e eu deixei escapar — Isadora fechou os olhos, sentindo a confusão de sentimentos e o cansaço finalmente tomando conta.

Julia colocou a mão sobre a de Isadora, um gesto que carregava tanto conforto quanto despedida — Nós duas deixamos.

O silêncio retornou, mas dessa vez era menos sufocante. Era como se as palavras, finalmente ditas, tivessem tirado um peso dos ombros de ambas. Isadora sabia que essa seria a última vez que ficariam assim, juntas, mesmo que apenas em silêncio. Amanhã, elas seriam apenas lembranças uma para a outra, pedaços de uma história que um dia foi tudo, mas que agora não passava de uma saudade amarga.

Isadora ligou o carro, a mente ainda nublada pelo álcool e pelas emoções que lutavam para escapar. Julia retirou a mão e a perda do contato físico foi como uma facada no peito. Elas não precisavam dizer mais nada. O adeus já havia sido pronunciado em cada gesto, em cada olhar.

Isadora começou a dirigir assim que Julia saiu do carro, ela sentiu as lágrimas queimarem seus olhos, mas não deixou que caíssem. Ela sabia que, assim como as gotas de chuva que escorriam pelo para-brisa, essas lágrimas não mudariam nada. A estrada à frente era solitária, assim como seria sua vida agora, sem Julia. A sua Julia.

Mas mesmo enquanto dirigia para longe, para um futuro incerto e solitário, Isadora não pôde evitar que uma única pergunta ficasse ecoando em sua mente, uma pergunta que talvez nunca tivesse resposta: E se eu te esquecer, quem vai lembrar de nós, amor?

E foi com essa pergunta que ela seguiu em frente, deixando para trás a rua vazia, o maior amor do mundo todo e as lembranças que um dia a fizeram sentir-se viva.

Não te amo | Julia SoaresOnde histórias criam vida. Descubra agora