· Dioneia

67 3 14
                                    


Satoru Gojo

A cada nova sala ou espaço em que entro, tenho a expectativa de encontrar Calvin presente, são e salvo, pronto para me abraçar e me explicar onde esteve esse tempo todo, caralho. Mas, mesmo antes de entrar na aula do sr. Zenin Naobito, minha intuição me diz que não o encontrarei aqui.

Dito e feito.

Meu irmão esteve ausente em todas as aulas do dia. Como isso pode não ter alarmado nenhum dos professores?

Já são quase dezoito horas. Sentado na penúltima cadeira da fileira mais próxima às janelas, brinco com os dedos, retirando
as cutículas pedaço por pedaço, pensando em Calvin, sem conseguir me livrar da sensação de que o tempo está passando
cada vez mais devagar.

Próximo à lousa, Naobito escreve algo para toda a classe enquanto continua recitando informações:

- Não deixem seus olhos ou suas preconcepções lhes enganarem, senhores. Embora pareça pequena e inofensiva, a
dioneia é uma planta carnívora perigosa, que captura e digere sua presa animal através da armadilha de dois lóbulos localizada em cada uma de suas folhas. É uma das raríssimas espécies capazes de realizar movimento vegetal.

Me viro em direção à janela, observando a paisagem digna de um cartão-postal. O céu está quase totalmente alaranjado, porções longínquas do mar já ganharam tons azuis-marinhos, escurecidas; vejo pássaros voando em formação; a neblina fina
começa a se formar em meio às árvores.
Passo os olhos despretensiosamente pela vegetação mais próxima, e uma ânsia súbita queima minha garganta. A figura
que vi ontem à noite está ali de novo, no limite entre a floresta e o castelo. Em plena luz do dia, ela estende apenas a cabeça de
trás de uma árvore. Cabeça? É isso mesmo que estou vendo? Parece mais um amontoado circular de sombras com uma sugestão de rosto, algo macabro e bem longe de ser humano. Está mais próximo de um demônio.

A penumbra não me deixa ver muito mais daquele corpo. A floresta não é densa, mas está escura. Porém, posso muito bem
discernir que está me mirando. Há dois orifícios ocos onde deveriam estar os olhos, e eles estão direcionados a mim, consigo
sentir. Pisco várias vezes para me certificar de que não estou alucinando, mas a coisa continua no mesmo lugar. Tão próxima e
tão distante; quase imóvel.

Que merda é essa?

Tenho vontade de gritar, de correr, de me virar e perguntar a qualquer um se está vendo a mesma coisa que eu, mas não
consigo; meu corpo e minha mente estão paralisados... de medo.

O encontro na noite anterior foi muito breve. Este está se estendendo por muitos segundos, que se transformam em
minutos. A figura não parece mais temer se expor; parece confortável em me aterrorizar.

Espero que o Calvin não esteja nessa maldita floresta.

Uma mão aperta meu ombro e me faz inspirar profundamente, me tirando do transe provocado pela sombra na
floresta. De olhos arregalados, me viro para o lado e encontro o rosto enfurecido, mas retraído, de Naobito à minha mesa.

- Quando a armadilha de uma dioneia se fecha - murmura ele, continuando a lição sobre plantas carnívoras -, não há mais escapatória para o pobre animal indefeso. - Então dá dois tapas no meu ombro e afasta o toque.

Um tanto atordoado, olho ao redor. A classe inteira está olhando para mim. Dezenas de pares de olhos me miram com curiosidade e julgamentos. Me encolho no assento.

-» Entre neblina e desejo / SatosuguOnde histórias criam vida. Descubra agora