Comecei este livro pela Holly
E terminei pela Maddy.Em 1987, nós nos mudamos pra Littlemead, na cidadezinha de Nutley, no condado de Sussex, no sul da Inglaterra. Nosso apartamento era parte do que no passado fora uma casa grande, senhorial, construída para o médico do rei da Inglaterra, pelo que o proprietário da casa me contou (antes de vendê-la para engenheiros locais). Era uma mansão naquela época, mas depois foi transformada em vários apartamentos.
O apartamento Quatro, onde morávamos era ótimo, mas um tanto esquisito. Acima de nós, havia uma família grega. Abaixo, uma velhinha meio cega que me telefonava todas as vezes que meus filhos pequenos se moviam dentro de casa, dizendo que não tinha certeza do que estava acontecendo no andar de cima, mas que muito provavelmente devia envolver elefantes. Eu nunca consegui descobrir quantos apartamentos havia ao todo, nem quantos deles estavam ocupados.Nosso apartamento era gigantesco. No final dele, havia uma porta de armário pendurada, que servia de espelho.
Quando comecei a escrever um livro para Holly, minha filha de cinco anos, ele se passava na casa. Pareceu fácil.
Dessa forma eu não precisaria explicar para ela onde cada coisa estava. Alterei alguns elementos, como a posição do quarto da Holly e da sala de estar. Inseri uma porta de Carvalho que se abria para uma parede de tijolos e uma atmosfera muito parecida com a da sala da casa onde cresci.
Ela era grande e velha, e tinha sido dividida em duas antes de nos mudamos para lá. Ficamos com o quartinho de serviço e a sala de estar com painéis de carvalho ("só para ocasiões especiais"), com uma porta que um dia fora a porta de entrada da família anterior e que agora não dava em lugar nenhum. Ela se abria para uma parede de tijolos.
Eu peguei aquela sala e aquela porta, junto com a saleta de entrada da casa da minha avó (" só para ocasiões especiais, não para a família", com natureza-morta em pinturas a óleo nas paredes), e comecei a escrever o livro.
O título seria Coraline. Eu tinha digitado Caroline, mas saiu errado. Olhei para a palavra Coraline e sabia que era o nome de alguém. Eu quis saber o que tinha acontecido com ela.
Holly gostava de histórias assustadoras, com bruxas e meninas corajosas. Esse era o tipo de história que ela me contava. Então a história que eu criaria pra Holly teria que ser assustadora.Eu escrevi a introdução e depois deletei. Era assim:
Esta é a história de Coraline, que era muito pequena para a sua idade, e se viu correndo muito perto na escuridão. Antes de a escuridão tomar conta de tudo, Coraline viu o que tinha atrás dos espelhos, e acabou se aproximando de uma mão má, e ficou cara a cara com sua outra mãe; ela resgatou seus pais Verdadeiros de um destino pior do que a morte e, apesar de todas as adversidades
saiu triunfante.
Esta é a história de Coraline, que perdeu os pais, depois os encontrou, e então (mais ou menos) escapou (mais oi menos) ilesa.Eu parei de escrever o livro da Holly quando nos mudamos para os Estados Unidos. (Estava escrevendo no meu tempo livre, embora não parecesse ter tempo livre para mais nada).
Seis anos depois eu abri o arquivo e continuei de onde tinha parado em agosto de 1992.– Olá – disse Coraline – Como você entrou aqui?
O gato não falou nada. Coraline foi se deitar.Eu recomecei a escrever o livro porque percebi que, minha filha mais nova, Maddy, já seria velha demais quando eu terminasse. Comecei este livro pela Holly. E terminei pela Maddy.
Na época morávamos nos Estados Unidos, em uma casa velha de estilo gótico. Lá tinha um torreão e um alpendre, com escadinha e tudo. A casa fora construída havia mais de cem anos por um imigrante alemão — um cartógrafo (uma pessoa que desenha mapas) e artista. O filho dele, Henry, me contou que ele foi o primeiro homem a colocar um motor em um barco ou em uma bicicleta, e ficou conhecido como "a pessoa mais criativa na história dos carros de corrida".
Então eu fiquei às voltas com Coraline novamente, e ainda não tinha tempo livre. Por isso, eu escrevia cinquenta palavras por noite na cama, antes de dormir. Como fiz um cruzeiro para arrecadar dinheiro para um projeto de defesa da liberdade de expressão nos quadrinhos, escrevi grande parte da história sentado no deque do navio. Terminei o livro em uma pequena cabana à beira de um lago na floresta. Dave McKean, artista e amigo, tirou fotografias de Littlemead, que ele usou para desenhar a casa que aparece na quarta capa da edição norte-americana original de Coraline.
Quando Henry Selick dirigiu a animação stop-motion baseada no livro, ele me convidou para ir ao estúdio. Havia muitos cenários, cada um escondido atrás de uma cortina preta. Coraline morava no filme. Ela havia se mudado de algum lugar da Inglaterra para.
— Essa é a minha casa — falei para Henry.
E era mesmo. O Pink Palace era igual a casa onde eu morava na época, com torreão, alpendre etc. Não sabemos como isso aconteceu. Mas pareceu estranhamente apropriado a um livro que começou a ser escrito por causa de uma filha, em uma casa, e tinha terminado de ser escrito por causa de outra filha, em outra casa.
O livro foi publicado em 2002, e as pessoas gostaram muito dele. Ganhou prêmios. Mais importante do que isso, ele funcionou, pelo menos para lgumas pessoas.
Uma década depois, comecei a encontrar algumas mulheres que me disseram que Coraline as ajudou a passar por momentos difíceis. E que, quando estavam com medo, pensavam na Coraline, e então faziam a coisa certa. E isso, mais do que qualquer outra coisa, faz tudo valer a pena.
Chris Riddell fez novas ilustrações para esta edição comemorativa de dez anos de publicação do livro. Eu olhei para a que ele havia feito para a capa e fiquei espantado e encantado com a maneira como ele combinou as duas casas — aquela em que moro e aquela em que eu morava.Neil Gaiman(2012)
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Coraline
KorkuNa nova casa de Coraline, há uma porta que esconde segredos. Um outro mundo, com pais de pele muito branca e olhos de botões negros. E eles querem que Coraline fique ali. PRA SEMPRE.