Pensou ter sentido a textura do lençol macio, e a ternura úmida de um beijo em sua testa; lábios que conhecia intimamente, um toque que reconheceria morta, enterrada e já desprendida da vida. O sono leve era doce e aveludado e a embriaguez mantinha seus músculos doloridos tão amortecidos que mal os sentia. Ouvia risos fantasiosos, cores que eram suplantadas pelo breu absoluto do sonho, mas sentia algo além da letargia; uma sensação de alarde que vinha em ondas.
— Você não deveria ter feito isso. Trazê-la aqui. — A voz de Adrien soa clara, cristalina. Marinette sente a letargia do álcool confundindo-a, impedindo-a de discernir o sonho do real. — A bebida, a droga. Você sabe que ela tem problemas com isso. Está sendo conivente com os vícios dela.
— Pelo amor de Deus, Adrien. Pare com isso. — E então havia a voz de Chloé. Grave, cortante como sua faca japonesa. Os ruídos do vidro contra a mesa, os movimentos dela pela sala. A escuridão nublava sua capacidade de pensar. Marinette não se moveu, mas sentiu o calor de dedos gentis acariciando seus cabelos— Eu a fiz um favor. A trouxe aqui, mas você sabe tão bem quanto eu que ela teria vindo sozinha se fosse necessário. Marinette faz o que quer. É uma mulher adulta. Então cabe a você aceitar e engolir isso. — Então ela soube, pela fala de Chloé, que não estava sonhando. Era o mesmo território selvagem que eles cruzaram no hospital, o embate silencioso entre Adrien e Chloé. A disputa que existia de forma velada e sorrateira.
— Ela está doente, Chloé. Precisa de ajuda, não que você facilite os maus hábitos! — Adrien aumenta o tom de voz de repente, e a loira se exalta ao chiar para que fizesse silêncio. Marinette suava de ansiedade debaixo dos lençóis.
— Você me diverte, Adrien. Não consegue nem tomar conta de si mesmo e está cacarejando no meu ouvido sobre o que você acha que é o melhor para uma pessoa que, até pouco tempo atrás, estava lidando com tudo isso sem você. — A firmeza dela, a certeza absoluta que tinha sobre si, sobre seus esforços, sobre a forma como tentava, e como tentou anteriormente, arduamente contra o monstro faminto que era a sua tristeza, o seu luto, fez com Marinette suspirasse inquieta e sentisse uma necessidade sofrida de chorar.
A fé de Chloé era algo tão natural, tão puro, que a deixava emocionada.
— E veja onde isso a levou, não é mesmo? — O contraste, a dor cuspida nas palavras dele, o ódio quase colérico, a fez se encolher no sofá. Não ousou abrir os olhos. Se pudesse vê-lo através do breu da sala, se pudesse enxergar sua figura destruída, traída e ardilosa, magoada e sofrida, ela se voltaria contra si mesma outra vez.
Machucá-lo a faria miserável no sentido mais cru da palavra. Mas o ódio dele diante de seu ato desesperado a magoou de uma maneira que ansiou e seria grata se pudessem quebrá-la inteira; se a dor fosse física, talvez pudesse aplacá-la. Suportá-la.
— Está com raiva por ela ter tentado se matar, é isso? — A incredulidade no tom dela soou amarga. O riso descrente de Chloé rasgou seu peito e expôs o tórax, a carne podre de seu âmago. Deliberavam sobre sua vida com uma naturalidade intimista que a expunha ao ridículo. Sentiu-se aberta como um cadáver de estudos sobre a mesa que perdeu o direito ao pudor. Já não havia mais aspectos de sua vida que não fossem destrinchados. — Você é patético. Afinal, sobre o tudo isso se trata? O fato dela estar tão mal ao ponto de querer morrer te deixa sem perspectiva de melhora ou ela só deixou de servir como a porcaria da sua muleta, hm?
Havia mais a ser dito. Marinette sentia que sim enquanto transpirava de ansiedade, mas ouviu o som do choque entre eles, o suspiro abrupto de Chloé e o ruído de mãos rudes.
— Não repita isso nunca mais, ouviu? Você não sabe de nada. — O sussurro de Adrien preencheu a sala quieta, reverberou pelas paredes cheias de infiltração, que testemunharam mais horrores do se poderia imaginar. E a voz dele morreu naquele momento, mas permaneceria gravada ali. Nas paredes. No interior inquieto de Marinette.
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Cicatrizes de batalha
FanficApós um acidente que ceifou a vida dos estudantes do colégio Dupont, os heróis aclamados de Paris não tornaram a aparecer. Restaram os sussurros, as velhas histórias de terror repassadas de boca a boca sobre o horror vivido no dia que marcara a qued...