A delegacia estava mais quieta do que o habitual. Era tarde da noite, e os poucos policiais que ainda estavam lá andavam em silêncio pelos corredores, como fantasmas, envoltos em uma atmosfera densa de cansaço e tensão. O relógio na parede marcava 23h45, e o café que eu tinha na mão estava frio. Não me importava, de qualquer forma. Minha mente estava em outro lugar, um espaço mais escuro e perigoso do que as luzes fluorescentes poderiam iluminar.
Clara estava ao meu lado, concentrada em um novo relatório sobre o assassino. Suas mãos deslizavam pelos papéis com precisão, e seus olhos estavam fixos nos detalhes que ela estudava como se fossem peças de um quebra-cabeça que só ela sabia como resolver. Eu observava de canto de olho, meu estômago embrulhado, sentindo uma náusea familiar crescer lentamente.
— Jack — sua voz cortou o silêncio, baixa e controlada, mas suficientemente forte para me trazer de volta. — Você vai continuar fingindo que está prestando atenção ou finalmente vai se concentrar?
Ela nem levantou os olhos do relatório, mas sabia exatamente o que estava acontecendo comigo. Senti meu rosto esquentar, um leve incômodo tomando conta. Não sabia se era a insônia ou o fato de que Clara conseguia ver através de mim.
— Estou prestando atenção — respondi rapidamente, minha voz saindo mais defensiva do que eu gostaria. — Só estou... pensando.
Ela finalmente ergueu o olhar, e seus olhos claros encontraram os meus com uma intensidade que me fez desviar por um momento. Era como se ela pudesse ver os meus pensamentos antes que eu pudesse articulá-los. E talvez ela pudesse. Clara Bennett não era apenas uma psicóloga forense qualquer; ela era uma mente afiada, fria, meticulosa. E, mais do que isso, ela sabia como ler pessoas como eu, aqueles que estavam sempre mentindo, escondendo algo, se enrolando em suas próprias teias de ilusões.
— Pensando? — Ela repetiu, arqueando uma sobrancelha. — Sobre o quê, exatamente?
Eu respirei fundo, tentando manter o controle. Clara era uma das poucas pessoas que me deixavam desconfortável. Ela tinha uma maneira de fazer perguntas simples que soavam como um desafio, uma tentativa de me desarmar. E, com o estado mental em que eu estava, não tinha certeza se conseguiria segurar o disfarce por muito mais tempo.
— Sobre o caso — menti, lutando para manter a voz firme. — A conexão entre as vítimas... algo não está se encaixando.
Clara inclinou a cabeça levemente, como se estivesse avaliando cada palavra que eu dizia, pesando seu valor. O silêncio entre nós se alongou, até que ela finalmente falou:
— Você está certo. Algo não está se encaixando. Mas não acho que seja só sobre o caso, Jack.
Suas palavras ficaram pairando no ar como um espectro. Por um momento, me perguntei se ela sabia mais do que deixava transparecer. Talvez ela tivesse percebido os lapsos em minhas histórias, as pequenas incongruências que eu estava começando a perder por causa da exaustão.
— O que você quer dizer? — Perguntei, tentando soar casual, mas sabendo que ela não cairia nessa.
Ela se inclinou para trás na cadeira, cruzando os braços sobre o peito. Seus olhos me perfuravam, esperando pela resposta que eu não sabia como dar. Havia algo na forma como ela se comportava que me deixava inquieto, como se eu fosse uma presa prestes a ser abatida.
— Você está dormindo? — perguntou Clara, de forma direta.
Meu coração acelerou com a pergunta, e eu quase derrubei o café que segurava. Eu deveria ter esperado isso, mas ainda assim a surpresa me atingiu como uma bofetada.
— O quê? Claro que estou dormindo — falei rapidamente, mas a mentira saiu apressada, mal costurada.
— É mesmo? — Clara me encarou, inclinando-se levemente para frente. — Porque você não parece. Seus olhos, seu comportamento... você está mais irritado, mais... desconcentrado. Se quiser continuar útil para esta investigação, precisa estar bem, Jack. Dormir faz parte disso.
Eu respirei fundo e tentei sorrir, como se o assunto não me incomodasse tanto quanto incomodava.
— Insônia — admiti finalmente, me rendendo ao fato de que ela não largaria o osso tão facilmente. — Está sendo um pouco pior do que o normal, só isso.
Clara continuou me encarando, como se esperasse mais. Eu sabia que deveria parar por ali, mas a pressão crescente dentro de mim — a verdade que lutava para se esconder — estava prestes a transbordar.
— Todos nós temos nossos demônios, Clara — disse, tentando mudar o rumo da conversa. — E, às vezes, eles ficam mais fortes quando estamos fracos.
Clara me olhou por um longo momento, sua expressão suavizando um pouco. Finalmente, ela suspirou e voltou ao relatório.
— Eu sei — murmurou ela, quase em tom de confissão. — Mas não podemos deixar que esses demônios nos controlem, Jack. Se o assassino está ficando mais confiante, nós também precisamos estar. Se você começar a desmoronar agora, ele já venceu.
Suas palavras me atingiram como um golpe. Ela estava certa, claro. O assassino estava se tornando mais ousado, mais limpo em seus métodos, como se soubesse que estávamos à beira de pegá-lo — ou pior, que ele estava nos cercando lentamente. Mas havia algo mais, algo que Clara talvez não soubesse. A verdadeira batalha não estava apenas lá fora, nas ruas e nas cenas de crime, mas dentro de mim, uma guerra silenciosa que eu estava perdendo lentamente.
O silêncio que se seguiu entre nós foi quebrado quando Turner entrou na sala, carregando mais uma pilha de relatórios. Seus olhos estavam vermelhos de cansaço, mas ele parecia determinado como sempre.
— Temos mais uma pista — ele disse, jogando os papéis sobre a mesa com um baque. — Uma testemunha viu alguém saindo da cena do crime, e achamos que pode ser o nosso cara.
Clara pegou os papéis, e eu os examinei também. Uma descrição vaga: um homem de meia-idade, vestindo um casaco escuro, andando com pressa. Nada que ajudasse realmente, mas era mais do que tínhamos antes.
— O que você acha, Jack? — perguntou Turner, me olhando com expectativa.
Minha cabeça latejava, e as palavras na página pareciam embaralhadas. Eu sabia que estava me aproximando do limite, mas precisava manter a fachada. Eles não podiam saber o que estava realmente acontecendo comigo.
— Acho que estamos perto — murmurei, mais para mim do que para eles. — Muito perto.
Clara me olhou de novo, e, dessa vez, havia algo diferente em seu olhar. Algo que me fez questionar se ela já sabia a verdade. Talvez não sobre o assassino, mas sobre mim.
Ao final da noite, Turner foi embora, e eu e Clara ficamos na sala de interrogatório. O relógio batia meia-noite, o som dos segundos ecoando no silêncio crescente. Clara continuava examinando relatórios, incansável. Mas, em certo momento, levantou os olhos e olhou diretamente para mim.
— Você não está me contando tudo, está, Jack?
Minha boca secou, e por um momento, o mundo pareceu congelar. Ela havia feito a pergunta que eu temia. Não sabia ao certo a que ela se referia — se era sobre o caso ou sobre meus demônios pessoais — mas, de qualquer forma, eu sabia que não poderia mentir para ela. Não agora.
— Não — admiti, minha voz um sussurro. — Não estou.
Clara não disse nada. Apenas me observou, com seus olhos clínicos e frios. E naquele momento, eu soube que, se havia alguém que poderia me ajudar a enfrentar a verdade que eu tanto evitava, essa pessoa era Clara.
Mas a pergunta era: eu estava pronto para isso?
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JACK CARTER
Misterio / SuspensoJack Carter é um mentiroso talentoso. Um homem de respostas rápidas, histórias inventadas e uma capacidade invejável de enrolar qualquer um. Mas, quando o detetive da polícia local, Marcus Turner, percebe que Jack tem uma estranha habilidade para in...