Capítulo 6: Sombras do Passado

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A madrugada sempre trazia consigo um frio sutil e um silêncio quase ensurdecedor. As ruas desertas da cidade pareciam congeladas no tempo, como se o mundo tivesse parado de girar por alguns minutos. As luzes dos postes piscavam ocasionalmente, e o vento levava as folhas secas pelo asfalto, num balé melancólico. Aquele era o meu ambiente, o espaço entre a vida e a morte, onde meus pensamentos se emaranhavam, e meus demônios dançavam.

Sentado no sofá do meu apartamento, com as luzes apagadas, me forcei a refletir sobre o que Clara havia dito na noite anterior. “Você não está me contando tudo.” As palavras dela ecoavam em minha mente como uma sentença. Mas o que ela realmente sabia? E o que eu ainda estava escondendo, até de mim mesmo?

Olhei para o copo de whisky na minha mão, o líquido âmbar refletindo a luz fraca da lua que entrava pela janela. Fazia tempo que não pensava em Anna. Minha ex-mulher. Fazia tempo que não me permitia revisitar aquelas memórias, mas ultimamente, tudo estava voltando à tona. As insônias, os pesadelos, e agora... os assassinatos. Um ciclo interminável de dor que parecia me seguir, independentemente de onde eu fosse ou o que fizesse.

Anna. Só de pensar no nome dela, meu peito se apertava. Quando nos conhecemos, eu estava em ascensão na minha carreira como investigador privado. Ela, uma advogada promissora, brilhante, mas com seus próprios fantasmas. Nosso casamento foi um turbilhão desde o início: amor intenso, brigas explosivas, reconciliações apaixonadas. Mas havia algo mais, algo profundo e sombrio entre nós, algo que eu nunca consegui identificar.

Era como se ambos estivéssemos correndo de algo, uma sombra em nossas vidas que nunca conseguimos escapar. Quando ela foi embora, senti que parte de mim havia sido arrancada. Ela levou consigo os segredos que nunca compartilhou. Ou talvez eu simplesmente tenha escolhido ignorá-los.

Me levantei do sofá, o copo ainda na mão, e caminhei até a janela. As luzes da cidade piscavam no horizonte, mas meus olhos estavam fixos no meu reflexo no vidro. Um homem cansado, de barba malfeita, olheiras profundas e um olhar vazio. Quem era eu agora? Jack Carter, o mentiroso, o ex-investigador, o homem que mal conseguia dormir à noite sem ser assombrado por lembranças que preferia esquecer.

A verdade é que eu também estava correndo de algo. E talvez Clara estivesse certa. Talvez fosse hora de encarar os demônios que eu vinha evitando há tanto tempo.

Na manhã seguinte, eu estava na delegacia antes de Clara e Turner chegarem. O ar cheirava a café fresco, mas eu não conseguia suportar a ideia de tomar mais uma xícara. Me sentei em frente à pilha de relatórios acumulados na mesa de Turner. Ele havia deixado tudo ali na noite anterior, como se esperasse que alguém resolvesse o quebra-cabeça enquanto ele descansava.

Clara entrou pouco depois, com o olhar afiado de sempre. Ela era uma mulher de presença, seus movimentos eram precisos, controlados, e os olhos não perdiam um único detalhe.

— Você está bem, Jack? — Ela perguntou sem rodeios, enquanto se sentava ao meu lado.

Assenti, mas sabia que Clara não se satisfaria com isso. Eu não estava bem, e ela sabia. Decidi mudar de assunto antes que ela fizesse mais perguntas.

— O que temos da última vítima? — perguntei, tentando parecer focado.

Ela olhou para mim por um momento, estudando minha expressão, mas então pegou o relatório da última cena do crime.

— Encontraram o corpo na noite passada — disse Clara, virando as páginas. — Um parque isolado, perto de um lago. A vítima foi identificada como Sarah Holbrook, 34 anos. Mãe solteira, trabalhava em um restaurante local. Saiu de casa depois de deixar o filho com uma babá, e nunca voltou.

Olhei para as fotos anexadas ao relatório. O corpo de Sarah estava em uma posição estranha, com os braços abertos, como se estivesse tentando abraçar o chão. Sua pele estava pálida sob a luz fria da polícia, o rosto contorcido em uma expressão de horror congelado. Havia algo ritualístico em como o corpo fora disposto, como se o assassino quisesse transmitir uma mensagem que apenas ele entendia.

— Nenhum sinal de luta? — perguntei, franzindo a testa enquanto lia os detalhes.

— Nenhum — respondeu Clara, com a voz baixa. — Assim como as outras vítimas. O assassino parece saber exatamente o que está fazendo, como controlá-las. Acreditamos que ele a drogou, assim como fez com as outras.

O padrão era familiar demais. Uma mulher sozinha, morta sem sinais de luta, corpo disposto de maneira metódica. Era como se o assassino estivesse brincando conosco, deixando pistas o suficiente para nos manter próximos, mas nunca o suficiente para prendê-lo.

Mas havia algo diferente em Sarah. Algo no seu olhar morto, na forma como o corpo dela estava disposto, que me lembrava... de outra pessoa.

Minha mente voltou a Anna.

Anna e eu éramos jovens quando nos casamos. Jovens e imprudentes. Nossas brigas eram lendárias, mas ninguém sabia o que realmente acontecia por trás das portas fechadas. Anna tinha um jeito de me levar ao limite, de me fazer questionar minhas escolhas, meus impulsos. Ela era afiada, inteligente, e não aceitava nada menos do que a verdade absoluta.

Mas havia algo no olhar dela que sempre me perturbava. Uma espécie de medo que eu nunca entendi totalmente. Um medo que, às vezes, eu pensava que era de mim.

Lembro de uma noite em particular, uma noite que mudou tudo. Tínhamos brigado mais uma vez, algo trivial, eu acho. Mas naquela noite, Anna me disse algo que nunca consegui esquecer. Ela olhou para mim, com lágrimas nos olhos, e disse: “Você não sabe do que é capaz, Jack. Mas um dia vai descobrir, e esse dia vai destruir você.”

Ela foi embora logo depois disso, e eu nunca mais a vi. A dor que senti na época foi esmagadora, mas agora... agora me perguntava se ela sabia mais sobre mim do que eu sabia sobre mim mesmo. E se... ela estivesse certa?

O som de Clara virando as páginas me trouxe de volta ao presente. Ela estava examinando outro relatório, mas sua expressão havia mudado. Havia uma tensão nos ombros dela, algo que indicava que ela estava prestes a me mostrar algo importante.

— Jack, isso é estranho — disse ela, passando uma folha para mim. — O relatório toxicológico da última vítima. Não encontramos nada de diferente, exceto por uma substância em baixa concentração. Não conseguimos identificar totalmente, mas parece um composto de benzodiazepina... misturado com outra coisa.

Olhei para o relatório, tentando absorver as informações. Algo não se encaixava. Por que o assassino usaria uma droga desconhecida agora, tão sutil? Estava ficando mais ousado ou apenas mudando o jogo?

— Tem mais uma coisa — Clara continuou, agora com a voz mais hesitante. — A vítima... Sarah Holbrook... ela tinha uma tatuagem nas costas. Algo que encontramos nas outras duas últimas vítimas. Uma marca, como se tivesse sido queimada. É pequena, mas parece ser intencional. Como um símbolo.

Meu coração acelerou. Um símbolo. Uma marca. E, de repente, um calafrio percorreu minha espinha. Eu já tinha visto algo assim antes. Muito antes, quando era apenas um garoto.

Fechei os olhos por um segundo, tentando afastar a lembrança que surgia com força. O cheiro de cigarro, a escuridão do porão da casa dos meus pais, e o barulho dos passos de meu pai descendo as escadas. Ele sempre usava aquele isqueiro antigo, o som do clique metálico era um presságio do que estava por vir.

Ele tinha uma marca. Uma marca nas costas, que eu descobri uma vez por acidente. Um símbolo que eu nunca entendi. Mas agora... agora parecia que tudo estava voltando. Tudo estava se conectando de uma forma que eu nunca poderia ter imaginado.

Clara me olhou, percebendo minha expressão.

— Jack? O que foi?

Eu queria contar a ela. Queria compartilhar o peso que começava a sufocar meu peito. Mas, naquele momento, eu percebi que estava sozinho. Meu passado, o que eu realmente era... estava entrelaçado com esses assassinatos. E talvez, só talvez, eu estivesse muito mais próximo desse assassino do que qualquer um poderia imaginar.

Mas uma coisa era certa: o passado não ficaria enterrado por muito tempo. E, no fim, ele sempre encontra uma maneira de voltar.

JACK CARTEROnde histórias criam vida. Descubra agora