O lar dos refúgios, visto como abrigo da própria chama viva, fortaleza inexpugnável, guardando os seus sob constante vigilância dos soberanos, a cidade da luz, ou apenas Lafir
O mar de vozes ao redor deixava os jovens um pouco incômodos de primeira, mas logo foram deixando de lado e focando no que realmente importava no momento: a "caminhada final". Suas mentes forçavam o cansaço para longe, abrindo lugar para a curiosidade e a inocência que não puderam aproveitar em Seamh.
As carroças, em maioria, passavam com a carga coberta, deixando apenas dicas do que levavam com base em seu formato, enquanto os mercadores que empurravam pequenos carrinhos de madeira faziam questão de ofertar mesmo enquanto andavam, desde as mais variadas flores às réplicas fajutas de pedras preciosas. Os idiomas pouco importavam, mesmo que Stella e Quípor entendessem muito bem o , mas os gestos falavam bem mais, com os mercadores tão invasivos quanto possível, quase forçando os produtos nas mãos daqueles turistas confusos. Só desistiam quando deixados para trás pelas passadas longas e apressadas dos jovens, encontrando uma forma de se divertir pelo menos um pouco com a situação.
Os grandes arcos de mármore que marcavam a entrada da cidade pareciam esculpidos magicamente a partir das rochas que compunham a montanha, quase como se a própria cidade tivesse sido forçada em uma das extremidades da Meah'Gōe. A estrada ia de um rochoso para uma sequência de tijolos, formando vários caminhos a partir de uma grande rua principal, circundando ao longo das extremidades montanhosas, quase como uma serpente presa ao tronco.
A cidade é a montanha?! Um pensamento comum para a maioria dos recém-chegados a Lafir, alheios à história da cidade ou do reino. Quípor não escapava, era o exato pensamento do rapaz, abismado com a forma em como as construções se construíam e adaptavam-se às deformidades naturais da montanha com maestria, causava uma estranheza e uma atração únicas. Stella por sua vez, sentiu alívio que não pôde explicar, uma calmaria repentina, como se pudesse passar horas e horas parada ali, intocável.
Acima da cidade, seguindo pela rua externa até o cume, o palácio se mantinha sobre uma falha da Meah'Gōe, quase como a boca da montanha. Suas torres chegavam a arranhar as nuvens, e na mais alta tremulava com o vendo a bandeira vermelha e branca, a "constelação" dos Imrhett.
Os olhos da jovem se focavam ali, presos às cores vibrantes da família real, aos detalhes minuciosos com que a estrela foi feita, além da própria estrutura do castelo em uma espécie de "segundo plano" de sua atenção. Inconscientemente levava a mão até o pingente, brincando com o objeto entre os dedos como de costume, e alguns olhares alheios corriam pelo pequeno artefato como abutres sobrevoando a carniça. Quípor, mais atento aos arredores, segurou Stella pelo braço e a guiou por entre a dezenas de desconhecidos que transitavam, fugindo daqueles olhares predatórios o quanto antes.
— Esse lugar é perigoso, se a gente não prestar atenção, vamos acabar sendo presos nos falsos encantos. — Quípor parecia tomar um choque com as próprias palavras, com um leve sentimento de orgulho de si.
— Falsos encantos? — Stella se deixava ser guiada pelo amigo, olhando curiosa para as estruturas novas que surgiam a cada esquina. — O que quer dizer?
— Tudo isso! — Quípor tentava encontrar um lugar mais aberto, ou mais vazio, mas era em vão. — Tem algo estranho aqui.
— Não importa, é exatamente onde devemos estar. — Stella demonstrava mais resistência, forçando Quípor a parar e se virar para a amiga. — Está com medo?
O rapaz respirou fundo. — Não estou com medo, mas há algo estranho, algo a mais. — Seus olhos escondiam receio, mesmo sem saber explicar o porquê de querer evitar o lugar, apesar da beleza.
Stella facilmente se desvencilhou do braço dele, recuando um passo antes de apontar para cima, em direção ao palácio. — Não vamos desistir tão perto. — Seus olhos ardiam em direção ao rapaz, que facilmente reconhecia a teimosia e imprudência. — Pelo menos eu não.
As palavras rodavam pela mente de Quípor em repetição, quase como se o rapaz medisse o quão imprudentes poderiam ser dali para frente. Seu semblante trazia um pouco de preocupação sob um incômodo bem perceptível, e não houve mais nenhuma reposta por parte dele no momento além de um suspiro pesaroso.
Lafir se dividia de uma forma diferente de como haviam estudado as cidades e cidadelas, sua riqueza era perceptível em adornos espalhados pelos pontos mais belos, e seus estabelecimentos transbordavam de viajantes, sem guardas ou soldados aparentes. As poucas residências que havia nos "níveis mais baixos" eram, em sua maioria dos curandeiros, taverneiros, ferreiros, e alguns outros trabalhadores mais acessíveis. Os jovens viram de tudo enquanto passavam por ali, desde apresentações de rua, com melodias animadas e rodas de pessoas ao redor, até pequenas filas de pessoas esperando para entrar em tavernas lotadas. Era estranhamente encantador para Stella, e para Quípor havia se tornado um motivo de apenas estranheza receosa.
Já os níveis mais acima, revelados após seguir pela rua externa por alguns minutos, eram carregados de artífices requintados, algumas casas nobres de menor influência faziam seus negócios ali, mantendo seus comércios caros ou serviços providos por décadas de herança. Algumas flâmulas eram bem chamativas, mas nenhuma demonstrava tanta imponência.
Era um pouco menos movimentado por ali, por mais que as estruturas fossem maiores e os itens expostos em vitrines demonstrassem claramente ser de melhor qualidade. Algumas carroças mais robustas subiam até ali, puxadas muitas vezes por grandes cavalos, e outras eram trazidas com muito esforço pelos próprios mercadores.
Havia um cheiro peculiar por ali, com essências e perfumes escapando sempre que algumas lojas específicas abriam suas portas e tocavam os sinos irritantes, quase como se o vento constante que corria ali em cima fosse uma forma de impedir que aqueles cheiros se acumulassem numa bolha sufocante.
— Como esse pessoal não se mata sem querer? — Quípor resmungava, quase que falando sozinho. — Parece que o lugar pode explodir a qualquer momento... isso é cheiro de pólvora?
— Não, é bem diferente. — Stella respondia sem pensar muito. — Não parece tão pesado.
— Pesado? O cheiro? Estamos falando da mesma coisa? — Quípor estava confuso, o cheiro era inconfundível.
— A pólvora é... sufocante, sabe? Muito mais do que... "isso".
Percebendo que provavelmente se tratava da sensibilidade que Stella tinha com seus sentidos, Quípor apenas deu de ombros, não querendo levar aquele tipo de coisa adiante. E foi bem a tempo de contemplarem os portões que levavam à espécie de cidadela onde se encontrava o palácio.
Era uma visão um tanto quanto confusa e chamativa do que parecia ser impossível, o caminho externo terminava em uma praça majestosa, bem à frente de dois portões encaixados na rocha. Os portões estavam abertos, duas enormes placas de mármore, revelando uma escadaria feita com a rocha da própria Meah'Gōe.
Que tipo de arquitetura é essa?! Mais uma vez os pensamentos de Quípor se alinhavam aos da maioria que pisavam naquela praça pela primeira, segunda, talvez até pela décima vez. Ao fim da escadaria, bem próxima ao topo da montanha, uma enorme chama brilhava forte sobre um pedestal de mármore; A chama viva. Para alguns estrangeiros, era apenas uma tocha mantida por meio dos cânticos dos Oradores reais, para os mais devotos, era a essência mais pura de toda centelha, viva desde Héres. Stella se sentia abraçada pela calorosa chama, mesmo a muitos metros de distância, era como se fosse convidada a se aproximar, mas no momento em que pôs os pés na escadaria algo dentro dela alertou para volta. Era tarde demais.
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Coroa Sangrenta - Aço e Fogo
FantasyPara alguns, não há nada mais angustiante do que mergulhar em águas desconhecidas, ainda assim, existem aqueles que, talvez por ignorância, abraçam a maré sem hesitar. Stella, uma órfã teimosa e alheia aos problemas do mundo, embarca em uma jornada...