1986: H3ll

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           Nova manhã, novo dia, novo inferno. Ouço vagamente as palmas da plateia, mas não consigo ouvir nada que estão me dizendo. As instruções parecem sem sentido, eu não consigo entendê-las. Sinto minhas costas estalar, não é pouco, é muito, doí pra caramba!
– Vamos, vadia! Saia daí!
          Sinto alguém me puxar para fora, me carregando para um lugar longe. Meus olhos ainda vendados, mas sinto um cheiro podre e azedo, o cheiro de urina está forte. Eu voltei ao calabouço. Merda. Merda. Merda.
– Eu mandei você não fazer aquilo! Não está completo! Você vai estragar suas costas e não vamos mais ganhar o dinheiro!
– Podem me desvendar?
– Você vai me ouvir! – A pessoa me joga pro fundo da cela. – Garoto, melhor focar no que dizemos, temos muito a conversar.
          Posso ouvir ele estalar os dedos e desafivelar o cinto. Engulo seco, sei onde isso vai dar, mas espero que realmente não façam isso novamente. Por que? Por que eres assim, pobre vida? Por que não deixaste a minha alma descansar? Preciso.
– QFRVENP, WPDF UFSB TVB WJOHBODB. - Você não! Cale-se maldita voz!

                                                                                     *****
          Meu corpo está jogado no chão, dolorido e deitado de bruços. Meus olhos marejados com sangue, meus quadris têm as marcas de suas mãos e o cinto dele está ao meu lado. Ouço ele mexendo na maleta, tirando alguma coisa de lá. Pensei que meu inferno já teria acabado por hoje, mas parece que não descansarei tão cedo.
– Ouça, Andrew, melhor ficar paradinho enquanto eu aplico isso.
– O que vai fazer?
– Você saberá.
          Sinto um arrepio percorrer pelo meu corpo. Odeio respostas vagas, principalmente em momentos como esse. Levanto minha cabeça e encaro o homem, que enche a seringa com aquele líquido amarelo fosco e coloca a agulha na ponta.
          Deito minha cabeça novamente, mas ainda olho para o homem. Eu sei o que vem aí, eu sinto o que vem aí, e só de lembrar a dor, meu corpo começa a latejar, tremer e meus olhos voltam a lacrimejar. Ele se aproximou de mim e segurou meu pescoço, enfiando aquela agulha enferrujada em minhas costas – bem onde bate os ossos da lombar. – e injetando o líquido em mim.
          Solto um grito de dor, mas meu corpo não consegue reagir com a dor que sentia. Agonia, é tudo que eu sinto agora. A dor se foi, mas de algum modo, ainda permanece. Tudo roda. Roda. Roda. Roda. Roda. Roda. Deus, por que você nunca ouve minhas preces e orações?!
          Ele retira a agulha de mim e a joga de volta na maleta, tirando um pouco de gim e passando no mesmo algodão sujo da semana passada. Aquele último se aproxima de mim e passa a rodela de algodão no furo da aplicação passada. Grito novamente.
– Arde! Arde! Isso arde! Deus!
– Eu mandei não gritar. – Ele transfere um tapa na ferida feita minutos atrás. – Se não quer sofrer com isso, cale a boca.
          Eu me calo, obviamente. Não quero sentir seu cinto em minha pele e seu pênis em minha boca. Finalmente sinto ele soltar as correntes do meu corpo e jogar a velha roupa de hospital em mim. Já posso vesti-la. Já posso senti-la. Já posso ser menos sujo.
          Coloco a vestimenta rapidamente e olho para a porta da minha gaiola. O homem já se foi. Sou só eu e eles novamente. Me encosto nas grades e me aproximo, tentando ver se consigo falar com Carrie.
– Ei! Andrew! Aqui! –
          Olho para a direção da voz feminina. É ela! Carrie me encara de sua gaiola, que, por sorte, está perto de mim.
– Carrie! Carrie! Carrie! – Grito a ela e sorrio.
           Parece que a dor sumiu! Ela está aqui! Carrie é como minha irmã mais velha. Ela chegou aqui faz 1 ano e meio, mas sempre cuidou tão bem de mim! Tão carinhosa comigo! Tão fofinha! Ela é mais velha que eu. Uns 4 a 5 anos mais velha.
– Pequeno Andrew, o que houve com seu corpo? Está mais pálido. – Ela me questiona com seu tom pacifico de sempre.
– Eu estou com fome... Faz 2 dias que não me alimentam com nada, sinto que vou ficar mais fraco.
– Pobrezinho... Eu posso tentar conseguir comida para você, sabe como minha lábia sempre foi muito boa.
– Sim, eu sei bem... Só tenho medo de você conseguir arranjar problema para si.
– Nunca, Andrew... É só eu dizer que vamos morrer em tempos que eles vão nos alimentar com facilidade.
– Não sei não, Carrie...
"– Aceita essa porra logo, Andrew. Eu quero te ajudar, só aceita, caralho"
– O que disse?
– Aceita a minha ajuda, Andrew, por favor... Me doí te ver sofrer tanto assim.
– Certo, então pode ser...
          Carrie sorri pra mim e chuta a portinha da gaiola dela, a abrindo com a força do chute. Ela se rasteja no chão sujo e sai do calabouço. Olho pro chão, cheio de insetos mortos e completamente imundo. Posso ver as crianças mais novas começando a comer baratas mortas que encontravam. Elas parecem esfomeadas, prontas para atacar.
           Suspiro e me ajoelho, fechando meus olhos e juntando as mãos.
    Deus, por favor, eu te imploro. Nós tire daqui, por favor. Somos almas tristes e sujas, mas queremos um momento de felicidade. O que fizemos na nossa antiga vida para merecermos isso? Queria ter uma família, assim como crianças normais. Queria uma casa para morar, assim como crianças normais. Todos queríamos. Pecamos tanto em nossa antiga vida?! Somos crianças! TENHA DÓ, SENHOR, POR FAVOR, POR FAVOR! EU TE IMPLORO! POR FAVOR! POR FAVOR! POR FAVOR!
          Me deitei e me encolhi no chão. A porta do calabouço ficou aberta, agora o vento gélido bate em meu corpo, me deixando com frio. As outras crianças percebem o frio e também se encolhem em seu canto. Todas trêmulas e encolhidas. Como eu queria ajudá-las, mas estou tão impotente como elas.
          Solto um suspiro e olho pra porta novamente. Por favor, Carrie, chegue logo, precisamos dessa porta fechada e meu estômago ronca de fome. Lentamente começo a me sentir um egoísta. Todas elas sofrendo por privação de comida e eu pensando em comer sozinho.

O Garoto Sem OssosOnde histórias criam vida. Descubra agora