Minha cama no fundo do quarto, escondida da luz dura e prateada que a lua despeja sobre a sacada. As casas dos bairros abaixo, atrás dos balaústres de madeira. Meus joelhos doem, cansados de esperar por Bete. Meus olhos fundos afundados em ruas rachadas, redesenhando-as, perdendo nas fissuras rochosas as memórias das vezes em que o lado negro das nuvens a entregaram para mim, isso eu não queria mais, por hoje.
Como não sinto - embora cada fechar desajeitado dos seus olhos carmim me recordassem sempre mais - da sujeira de outros em suas presas agulhadas a azedar o mel secreto com que Bete adoçava o meu sangue doente?
Dizia-me que eu era muito, nas noites breves em que vinha de longe, sempre atrasada, fugindo de caçadores, ofegante; seu peito suado sob o espartilho branco esfarrapado, apertando a altura de sua barriga macia; inflamados como seus olhos, o volume crespo e rubro dos seus cabelos fatiado por espadas e chamuscado por tochas. Deitava comigo nas minhas sombras, escondia seus dedos curtos sob os pelos do meu peito, arranhando-me calmamente com suas longas unhas rachadas, afagava minha orelha com o seu nariz miúdo, minha carótida pulsava, cravava os dentes com fome de sangue. Sua íris vermelha se iluminava, escorrendo uma luz cruenta sobre o meu peito nu, não para muito longe.
- Você acha que, só com o meu sangue, não poderia ficar um pouco mais? - Pergunto-lhe, sentado na ponta da cama, secando meu pescoço.
- Por quanto mais tempo?
Não me virei. Não respondi. Bete correu para a janela como um vulto, e olhou-me como se eu fosse um filhote largado sozinho no ninho.
- Eu gosto do seu sangue. - Disse Bete, sob as calmas juras dos seus cílios estrelados
E, finalmente, ela se tornou novamente um vulto. Mais um vulto confundido entre os outros vultos da madrugada.
Hoje atrasada como sempre. E eu queria encontrar um lugar onde eu consiga não esperar pela fugitivo ferida entre os cedros, ou pela guerreira assassinada, ou pela seguidora ferrada de um rei cego, ou pela sedenta, talvez agora apoiada em outra clavícula.
