Os sinos agarrados à porta balançaram, deixando a fumaça do defumador fugir de dentro da loja. Já passava do meio dia, mas não tinha ânimo pra levantar da banqueta de trás do balcão, ou sequer de tirar os olhos da lista de compras que estava fazendo. Taylor ainda não tinha respondido minha mensagem e sem o dinheiro cair na conta conseguir tudo da lista ainda estava mais para sonho do que para realidade. Meu almoço então, estava quase sendo a farofa com dendê do assentamento da frente da loja.
-- Precisa de alguma ajuda? -- Perguntei, ainda compenetrada tentando escolher entre comprar feijão fradinho ou feijão preto, já sabendo que meu avô ia reclamar do sabor de qualquer um dos dois.
-- A lista de hoje é longa, viu. Seu maneco não está aí hoje, não?
-- Tá viajando, mas você pode deixar que eu conheço essa loja como a palma da minha mão. E minha avó era quiromante então... -- Eu finalmente levantei os olhos, optando na minha cabeça pelo feijão carioca, que tinha menos chance de dar errado, e me deparei com o garoto loiro do ônibus, ainda de colete, segurando um caderno nas mãos onde anotava algo de modo concentrado. Seus dedos não estavam mais machucados.
-- Então? -- Perguntou, ainda distraído, levantando os olhos para mim. -- É a garota do ônibus, não é? Nunca te vi por aqui, antes.
-- Eu quase nunca cubro a loja. Estou sempre lá atrás com as plantas e os animais, me dou melhor com eles do que com gente.
-- Lidar com gente geralmente não vale a pena. -- Sorriu, tirando os óculos escuros da cara. Eu desviei o olhar para o caderno em suas mãos antes de sequer ver qual era a cor de seus olhos. Aquela energia densa parecia ter acompanhado ele para dentro da loja, mesmo que de forma mais tênue.
-- Do que vai precisar hoje? Tem uma lista do seu Babá? -- Ele fechou o caderno, com rapidez, guardando-o no bolso de trás da calça.
-- Tenho tudo de cabeça, mesmo. Aquilo ali, não era nada.
-- Peregum roxo, Mamona, cordão de alho... -- Eu o olhei, contabilizando só a pilha gigante de coisas que ele tinha vindo comprar. -- Vai fazer o que? Caçar monstros, é?
-- As vezes é necessário, né? -- Riu, tirando a carteira do bolso.
-- Com esse tanto de coisa pra descarrego você vai é transformar cemitério em maternidade, isso sim. Vai levantar os morto tudinho das covas. 280,00 reais. Seu nome, pra colocar na notinha?
-- Bevan. -- Se apresentou. Nome estranho da porra. Ele mexeu na carteira com cuidado, me entregando um papel dobrado recheado de algo. O abri, pensando ter dinheiro de verdade ali no meio, mas era só mais papel picado, como os do ônibus. -- Aqui se paga com dinheiro de verdade, tá? Não é papel ou dinheiro de banco imobiliário não.
-- Do que está falando? -- Eu olhei no fundo da cara dele, sem paciência, os olhos cinzas como o tempo lá fora lançaram um arrepio na minha espinha, mas eu mantive a postura. -- É dinheiro de verdade, não está vendo?
-- Isso aqui?! -- Balancei na sua frente, e quando vi, entre meus dedos, estavam lá as cinco notas de cinquenta, uma de vinte e uma de dez, bem coloridas, bem reais. Eu olhei para seu sorriso de canto de boca, descrente, e olhei para as notas de novo. -- Você me perdoa, viu, moço? Eu acho é que estou ficando doida mesmo. Muita coisa na cabeça, sabe como que é, não sabe?
-- Sei sim, tá tudo bem. Esses erros acontecem mesmo. -- Eu enfiei as notas na registradora, sem entender, vendo-o sair da loja com as sacolas. Tinha certeza de que a falta de sono estava me cobrando o preço.
O horário de sair da loja estava chegando, Taylor nem sonhava em me responder, então decidi anotar um vale pra mim mesma pra pagar pelas compras. Tinha que ser de tudo que tinha no caixa: Duzentos e oitenta reais.
Eu bati o olho no fundo da caixa registradora, Papeis picados, nenhuma nota ou moeda, somente papéis picados.
-- Como?! -- Meus dedos correram entre os pedaços. -- MAS QUE FILHA DA PUTA! COMO QUE ELE FEZ ISSO?! ISSO NÃO VAI FICAR ASSIM!
Catei o livro de registro da loja, com o nome dele em mente. Se ele já tivesse comprado bicho pra corte, ia ter o endereço dele lá pra entrega. Eu ia buscar aquele dinheiro nem que eu morresse tentando. Rua Onório de Freitas, número 666.
-- Tá de sacanagem, né? -- Eu já esperava, honestamente que o endereço fosse falso, e que não existisse casa 666, mas havia na rua o 665 e o 667 cada um de um lado de um beco estreitíssimo que parecia dar em lugar algum. Amassei os papeis picados ainda mais dentro do bolso e a outra mão passei pelo cinto de cabo de aço que meu avô enrolava na minha cintura desde pequena. -- É isso ou nada.
Mesmo sendo pequena, tive de me esgueirar pela passagem afilada, descendo escadas para o que parecia ser um buraco escuro até quase dar de cara num portão amarelo, por onde passava pequenos filetes de luz. Com a lanterna do celular deu pra ver 666 pintados no portão.
-- Entrega! -- Berrei, surrando o portão. -- Ôh de casa! Entrega! -- Nenhum pio saiu da casa. -- BEVAN?! -- Tentei, nada. -- FILHO DA PUTA! -- Bati de novo, sentindo meu sangue fervilhar de raiva. Estava sem dormir direito, sem gás no fogão, sem comida em casa e aquele filho da puta ainda me fazia de trouxa?! Minha vontade era jogar aquele portão abaixo, mas não importava o quanto batia nele, ele nem se movia ou arranhava. Meu telefone tocou, me assustando, Camille. -- MERDA!
-- Lucinda? Tá com as minhas coisas, já? Tô, indo pra casa, posso passar na sua? Trouxe um bolo de ontem do serviço, seu avô não quer?
-- Cami? Oi! Eu tô meio enrolada aqui, tenho que acertar umas contas, vou acabar chegando tarde.
-- Você tá bem, amiga? Sua voz tá estranha. -- Eu engoli o aperto na minha garganta, me debruçando no portão.
-- Tô bem sim, você pode me fazer um favor, Cami? Passa lá em casa e faz meu avô tomar os remédios dele? Amanhã te juro que levo os ingredientes do ebó na sua casa sem falta. É que realmente surgiu um imprevisto.
-- Amanhã sem falta?
-- Sem falta.
-- E eu digo o que pro seu avô?
-- Pra comer o resto do empadão, que era pra mim, porque já jantei. -- Menti, sentindo o estômago doer. -- E não me esperar acordado. Tenho que resolver umas coisas ainda.
-- Tá bem, te vejo amanhã então.
-- Até.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Luci Ferallia - A Esperança é Muito Branca
RastgeleEsperança é uma cidade diferente para cada pessoa que passa por ela. Para uns o paraíso turístico mais requisitado para as férias, para outros o lugar onde um teto sobre a cabeça, um limão e uma superbonder na geladeira constitui um lar. Mas para aq...