Sem lembranças

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•• EU, VOCÊ e o que não dizemos! ••
Quando os olhos falam, as palavras silenciam.
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"Se o mundo tivesse um botão de reiniciar... Eu tentei, é cientificamente impossível." - MEGAMENTE

[ Donavan ]

Uma nova notificação.
Mensagem de texto recebida.
Mãe:
"Donavan, você esqueceu o seu caderno de cálculo em cima da mesa da cozinha, se já estiver no ônibus eu levo para você amanhã cedinho. Me avise. Um beijo, bãbãe! ❤️

Uma nova notificação.
Mensagem de texto recebida.
Chloé 🐞
"Eu deixei o presente que deu de Natal dentro da sua mochila, não posso seguir em frente quando tudo que aquela caixa de música faz, é me lembrar de você cada vez que toca. Eu cansei de esperar por um sinal seu, não serei mais a sua Joaninha. Adeus Donavan.

*****

Abro os olhos, a claridade turva, alcançando apenas o teto branco e reluzente. Um sopro profundo escapa de meus pulmões, levando consigo o cansaço do que quer que tenha acontecido. Quando inspiro de novo, o ar fresco parece revitalizar cada parte do meu corpo, mas a fraqueza ainda persiste, me prendendo. Estou confuso. Onde estou? O que aconteceu?

Meus olhos vagam pelo quarto. Há algo fora do lugar. Vejo uma silhueta sentada sob a janela, e uma música suave, quase inaudível, envolve o ambiente. Não a reconheço, mas é acolhedora, como um abraço. Então, noto a decoração que contrasta com a esterilidade de um hospital: balões de ar coloridos, uma pequena joaninha entre eles, e um varal de fotos Polaroid pendurado na televisão desligada. Rostos sorridentes me observam, mas alguns me são estranhos, apesar de seus sorrisos familiares.

No pé da cama, uma almofada de retalhos com estampas de bandas de rock chama minha atenção. Ao lado, um Woodstock de pelúcia repousa, quase vigiando o ambiente. Quadros vibrantes decoram as paredes laterais, paisagens que parecem ao mesmo tempo familiares e distantes. E ali, no canto, meu violão, fiel, descansando sobre o suporte ao lado do sofá.

Meu olhar volta para a silhueta. Quando reconheço minha mãe, a emoção me atinge como uma onda inesperada. Tento chamá-la, mas minha voz mal passa de um balbucio trêmulo, o esforço de quebrar o silêncio pesando em mim como se fosse uma batalha.

- Mãe? - sussurro, a boca seca.

Ela me olha um tanto surpresa, seus olhos marejados começam a lacrimejar, ela larga delicadamente o livro que estava lendo sobre o sofá e se levanta como em câmera lenta.

- Donavan! Graças a Deus!

Seu abraço é terno e cuidadoso e também demorado. A emoção que ela sente nesse momento me deixa ainda mais confuso sobre o que aconteceu.

Os médicos entram no quarto e fizem alguns testes clínicos de sensibilidade e reflexo para saber se não havia nenhum prejuízo ao sistema nervoso.
Aos poucos fui sendo trazido de volta à dura realidade.
A dor de cabeça latente desorienta meus pensamentos.
Muitas informações chegam, todas ao mesmo tempo me sufocando.

- Mãe, o que foi que aconteceu?

- Vocês foram atropelados enquanto atravessavam a avenida, meu querido.

- Como assim, eu e quem mais? - estou confuso e sem lembranças para me orientar.

- Você e Chloé! - ela sorri.

- Chloé? Quem é Chloé, mãe?

O olhar penetrante de minha mãe sobre mim alerta sobre algo que não está devidamente bem comigo.

- Do que você se lembra daquela noite, Donavan? - ela segura minha mão, apreensiva.

- Daquela noite, nada! É tudo um borrão sem nenhuma clareza definida.

- E qual a sua última lembrança, então?
Seus olhos demonstram certa aflição e angústia.
- Vamos lá, tente se lembrar de algo. - ela insiste.

Fecho meus olhos e busco em minha mente algo que possa me ajudar nesse momento de escuridão.

- Me lembro de você em casa, sentada à mesa, com o notebook aberto, usando seus óculos de leitura.

- Como é o ambiente ao redor? Consegue visualizar?

- A mesa é de madeira de carvalho e tem uma gérbera e laranjas sobre ela, a parede é verde, quente e suave. E a torneira goteja incessantemente.

O semblante de minha mãe muda drasticamente.

- Mãe, qual é o problema?

- Eu ainda não sei ao certo, querido, preciso conversar com os médicos.

- Por que você precisa conversar com eles, converse comigo, o que tem de errado comigo mãe? - fico agitado com sua preocupação.

- Acho que você sofreu uma perda de memória significativa - ela continua - você não se lembra do acidente e o relato que fez é de quatro anos atrás, quando ainda morávamos em Québec.

Eu me ajeito com certa dificuldade na cama.

- Como assim morávamos? Onde nós estamos morando agora, e por que?

- Estamos em Winnipeg, porque eu me casei com Tim!

- Tim? - respondo confuso.

Enquanto o ar pesado da sala me envolve, ela respira fundo, e por um instante, tudo parece desmoronar. Ela chama a enfermeira, que aparece sem demora, e juntas trocam algumas palavras, sussurros que me escapam, ocultos pela porta entreaberta. A espera me consome. Em minutos, a sala se enche de médicos, suas vozes entrecortadas pelas diferentes teorias sobre meu estado. Sinto que estou à deriva em um mar de incertezas.

Despertar do coma parecia o primeiro passo, mas logo percebi que havia um novo desafio à minha espera: recuperar minhas lembranças perdidas. Os médicos discutem sobre mim como se eu fosse um enigma, mas minha atenção se desvia para o celular no criado-mudo, desgastado e sem bateria, talvez danificado no acidente. Peço um carregador à enfermeira, e ela, com um gesto rápido, atende ao meu pedido. Quem sabe aquele aparelho contenha respostas, fragmentos do que eu fui antes de tudo isso.

Mas, e se minhas memórias nunca voltarem? E se tudo o que vivi nos últimos quatro anos tenha se perdido para sempre? O vazio do desconhecido me assusta. Quem eu era? Quem são as pessoas que amei, aquelas que deixaram marcas em mim? E Chloé... esse nome ecoa em minha mente com uma estranha familiaridade, mas sem rosto, sem contexto. Quem é ela?

- Mãe? Onde está Meg? - pergunto, sentindo o peso da ausência dela, o desespero de não ter quem eu pensava que me esperaria ao acordar.

Antes que minha mãe responda, noto uma presença diferente no quarto. Uma silhueta furtiva se esconde atrás da equipe médica, mas quando nossos olhares se encontram, o impacto é imediato. Meu coração dispara, e de repente, o ar parece faltar. Minhas mãos suam, e a respiração se torna descompassada. Não sei o que me toma, mas algo dentro de mim reconhece aquela figura. Ela é hipnotizante, de uma beleza quase surreal. E então, tudo faz sentido - aquela linda estranha é Chloé!

EU, VOCÊ e o que não dizemos!Onde histórias criam vida. Descubra agora