Os Dois Cavaleiros

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Era uma noite fria de inverno, o mais frio do ano, em meados do século XVIII. A cidade estará coberta por uma densa névoa, mal se via um palmo além do nariz. Os postes de óleo, com suas luzes amareladas transformavam as ruas em um ambiente pouco convidativo, lançando arrepios na espinha de qualquer um que andasse nas ruas desertas da vila que hoje seria Campo Magro.

Os poucos que ousavam sair da segurança de suas casas podiam ouvir o barulho de ferraduras batendo contra as pedras das ruas, ecoando através dos becos e encruzilhadas. Para os poucos que ousavam olhar, eram presenteados com a visão de um belo quarto de milha tordilho, suas patas totalmente pretas, com ferraduras de prata polidas.

Sua cela, cor café, trabalhada em couro cru com bordados em preto formando um padrão único, belo. Seus detalhes de metal em prata igualmente polidos às ferraduras, estribos e pedaleiras cor ébano.  Sua manta, feita de pele de ovelha branca, contrastando com a pelagem do corcel.

Entretanto, não é a cela ou os padrões do animal que chama a atenção, é a falta de sua cabeça. Seu pescoço, logo abaixo da linha da mandíbula, sangra lenta e constantemente. Um sangue escuro e denso, que escorre até as patas do cavalo. Sua carne é de um vermelho vinho escuro, destacando as vértebras que sustentariam a cabeça. Apesar disso, ele detinha uma crina lisa e limpa, de cor tão escura quanto as patas, assim como seu rabo. Elas caíam elegantemente para o lado, parecendo uma cipreste de caxemira.

Seu cavaleiro, um homem alto, cabelos castanhos escuros, quase pretos, curtos e meios rebeldes, barba rala de mesma cor, olhos castanhos e uma pele pálida, vestido com trajes tropeiros típicos, seu chapéu largo de feltro preto, poncho vermelho sangue e azul marinho, sua calça larga acinzentada e botas cano alto marrom escuras.

A dupla corria e trotava sem rumo pela região. Esse é seu castigo por seu pecados, ele se conformou tem tempos. Quais pecados, você se pergunta? Ninguém sabe, não mais. Ninguém ousa descobrir e os poucos que tentam a sorte ou ficam loucos ou desaparecem na névoa que segue o cavaleiro.

Quando em vida, foi-lhe alertado de que seus atos não seriam aceitos, que se continuasse, perderia o direito do descanso eterno e de seu corpo descansar em terra santa. Por sua ignorância e prepotência, não deu ouvidos aos mais velhos, cavou sua própria cova ao continuar cometendo injúrias e, por consequência, foi condenado a vagar sem rumo pela eternidade, não sendo aceito nem no céu nem no inferno. Uma alma perdida, sem propósito, remoendo-se em uma infinidade de tempo, e ele o fez, por muitos anos pelo menos.

Há algum tempo ele encontrou com outra alma também condenada a uma jornada sem fim. alguém que cometeu os mesmos pecados que ele, e agora, comete mais um junto dele.

Este homem também vaga pelas ruas da região, montado em seu cavalo quarto de milha baio, ferraduras também em prata, cela cor avelã em couro cru com bordados de mesma cor, formando padrões únicos, mas que ornam perfeitamente com os seus, tendo a manta de pele de ovelha negra destacando-se no pelo do animal sem cabeça que parece parear sua própria montaria.

O homem, uma pessoa alta, mas não tanto quando o cavaleiro, cabelos castanhos mel, olhos de igual tom e uma pele tão pálida quanto a sua. Seus trajes igualmente típicos da região, mas ao invés de um poncho azul marinho e vermelho sangue, tem cores verde militar e vermelho vinho.

Cada noite de lua cheia, ele anseia se reencontrar com o homem. A cada noite, ele deseja poder rever aqueles olhos que o lembram tanto o por do Sol que sempre admirava em cima da pedreira da região, que sempre amou. A cada noite, seu coração anceava em poder ver mais uma vez o rosto do belo homem que tornou sua eternidade menos amarga, menos cruel, mais vivível.

Nunca trocaram uma palavra. Nunca precisou. Apenas aproveitavam a presença um do outro, a calmaria de suas angústias e solidão que deixavam sentiam quando juntos. Hoje, a sorte sorri para o tropeiro. Após algumas horas vagando no vilarejo, finalmente o mais baixo é encontrado, em frente à capela do local, trazendo um sentimento de nostalgia e serenidade.

O edifício que antes era símbolo de seus erros e penitência, de sua angústia e ignorância, agora é sinônimo de amor e companheirismo, afinal, a primeira vez que se encontraram foi em frente ao monumento.

Ao encontrar os olhos de seu amado, ambos sorriem, saem de seus cavalos e pegam um punhado de terra no chão em frente da terra santa negada a eles, fazendo o sinal da cruz para o outro, em sinal de respeito e cumprimento. Após o ritual, curvam-se um para o outro, montam seus animais e saem vagando e correndo noite adentro, compartilhando olhares e sorrisos, emoções únicas e mútuas, aproveitando cada momento presente. Afinal, a noite é uma criança e não saberão quando voltarão a se ver.

E assim, vagam sem rumo pela neblina, sabendo que eles tem todo o tempo do mundo para eles, e pensando que a eternidade pode não ser tão solitária assim.

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⏰ Última atualização: Sep 13 ⏰

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