Aquela tarde

2 0 0
                                    


A condição de precarização da educação na prefeitura daquela cidade, mesmo sendo a capital, fazia com que todo início de ano letivo os professores que atenderiam aquela modalidade de educação fossem diferentes, nem mesmo a coordenação era uma certeza, embora aquele fosse o quarto ano em que Adimu caminhava pelas ruas do bairro, a caminho da escola, rumo à coordenação.

A aparente "boa localidade" na escola, em uma avenida movimentada era a superfície, Adimu escolhera aquele lugar pois a comunidade escolar era composta por moradores do morro atrás da escola, de estudantes que vinham depois da avenida, onde já fora mangue e onde comunidades pescadoras um dia existiram. Os territórios que se costuravam pela modalidade coordenada por Adimu durante as noites naquela escola a faziam pulsar esperança e projetar, no presente, junto com os estudantes, possibilidades.

A equipe de professores naquele ano tinha 4 professoras mulheres sob a coordenação de Adimu: Helena professora antiga de teatro que um dia acreditou na mudança, mas os anos e as vivências A tornaram uma pessoa que de tudo duvidava e imaginava o pior; Luiza, jovem professora de ciências repleta de ideias e vinda de experiências em cursinhos populares; Jaqueline professora de matemática, curiosa das coisas e sempre com muita disposição e Maria... professora de história que defendia que o ensino deveria ser focado na expressão dos estudantes e estava sempre às voltas com o acolhimento.

Nos primeiros meses, o convívio entre Maria e Adimu foi marcado por atritos e debates calorosos nas reuniões pedagógicas. Se de um lado Maria defendia parar e ouvir sempre, acolhendo as demandas dos estudantes configurando as atividades a cada intervenção que fosse proposta em sala, Adimu acreditava que um currículo mais estruturado traria melhores resultados. Porém, em vez de um afastamento, as discussões levaram a um entendimento gradual. Ambas tinham um ponto em comum: o amor pela educação e a convicção de que a escola é um espaço de transformação.

Maria era casada com Laura, uma fotógrafa, e Adimu com Pedro, um arquiteto. Ambas tinham vidas estáveis e felizes em seus relacionamentos, mas o trabalho diário acabou trazendo à tona aspectos de suas personalidades que antes pareciam adormecidos. Elas começaram a perceber o quanto se entendiam profundamente. Na defesa dos seus pontos de vista, havia uma sinceridade, uma paixão que começava a se transformar em uma admiração mútua.

Aos poucos, a relação começou a mudar. As reuniões, antes intensas, tornaram-se mais colaborativas. Elas começaram a perceber o quão parecidas eram: obstinadas, comprometidas com a verdade, mas também incrivelmente sentimentais. A paixão que mostravam em suas palavras e gestos não era apenas teimosia; era um reflexo de um desejo de fazer o bem, de transformar o mundo à sua maneira.

Na casa de Adimu, Pedro percebia que Adimu está mais distante, mas não a confrontava diretamente, sempre focado em um novo "projeto imobiliário muito rentável" como gostava de dizer nos momentos em que Adimu e Pedro conversavam sobre seus trabalhos, momentos estes em que uma fina tensão se estabelecia pois Adimo era sempre questionada por trabalhar horas demais, se preocupar demais e não ter o retorno que Pedro considerava o importante, retorno financeiro, nas palavras de Pedro seus esforços eram "nada rentáveis".

Certa tarde, depois de uma reunião especialmente longa e intensa com a equipe de trabalho na escola, Adimu sugeriu que tomassem um café. Ambas caminharam em silêncio até o café do outro lado da rua. O sol já está se pondo, tingindo o céu com tons alaranjados, e o ar da tarde está carregado de um calor suave que parece refletir a tensão entre elas. Sentadas à mesa do café, Adimu mexia lentamente o açúcar no seu café, os olhos fixos na xícara, como se o movimento hipnótico das mãos ajudasse a ordenar os pensamentos.

— Você já se perguntou se estamos fazendo a diferença de verdade? - Questionou Admu, com sua voz em um tom baixo que não lhe era costume, mas firme, como sempre. Maria olhou para Adimu por um momento, surpresa pela pergunta. Adimu, a coordenadora sempre tão decidida, parecia menos segura naquele instante. A pergunta paira no ar, carregada de vulnerabilidade. Maria respirou fundo antes de responder, sentindo o peso da conversa que estava prestes a acontecer e hesitante respondeu:

— Mais vezes do que eu gostaria de admitir... Eu fico pensando se a forma como eu lido com os estudantes... se acolher as demandas deles... realmente os prepara para o mundo. Às vezes, eu sinto que não é suficiente.

Adimu finalmente levantou o olhar que estava pregado À xicara, os olhos encontrando os de Maria pela primeira vez desde que se sentaram. O silêncio que seguiu era denso, mas não desconfortável — como se ambas estivessem tentando ler uma à outra, entender o que as palavras não conseguiam dizer... era o primeiro de muitos silêncios confortáveis que passariam a existir.

— Eu sou assim também. Fico aqui, tentando montar estratégias, planos... mas no fundo, eu me pergunto...será que estou só tentando controlar o que é incontrolável? E se no fim, nada do que fizermos for suficiente?

A voz de Adimu era suave, quase um sussurro, como se estivesse admitindo uma fraqueza que raramente revelava. Maria percebe uma vulnerabilidade que nunca tinha associado à coordenadora. Considerou tocar a mão de Adimu, mas hesitou, não completando o movimento, ao invés disso, seus dedos roçaram de leve a borda da xícara de café, nervosos e Maria pois mais açúcar em seu café para disfarçar a intenção. Com um pequeno sorriso triste Maria continuou a conversa: — Você sempre parece tão segura, Adimu. Eu nunca pensei que tivesse essas dúvidas.

A risada baixa e amarga que Adimu lhe entregou culminou com o momento em que Maria percebeu que estragara seu café com a bobeira do açúcar a mais — A segurança é só uma máscara. A gente precisa vestir uma, não é? Especialmente para os outros. Mas, Maria... quando eu chego em casa... às vezes eu choro. Choro porque eu não sei se estou fazendo a coisa certa. E você... você parece ter tanto... coração no que faz. Eu admiro isso.

Maria sente o coração acelerar com as palavras de Adimu. Admiração. A palavra ressoa em sua mente. Ela se inclina um pouco na direção da coordenadora, a tensão entre as duas crescendo, embora ainda não tenha sido nomeada e quase em um murmúrio Maria confessou — Eu não sou diferente de você. Eu também choro... e também tenho medo. Talvez seja por isso que a gente se entende tanto

A profundidade do momento as envolveu, um silêncio pesado, mas carregado de significado. Nenhuma delas sabia exatamente como seguir a conversa, mas ambas sentiam que algo mudou entre elas. O olhar de Adimu era mais profundo, mais intenso, e Maria se perdeu nele por um momento, antes de desviar rapidamente o olhar, o calor subindo em suas bochechas.

Quando o ano letivo acabou e um outro ano iniciou todos os professores que atendiam aquela modalidade de educação eram diferentes e mais uma vez apenas Adimu permanecia, fincando raízes naquela comunidade, o sorriso em reencontrar pelas ruas do bairro sorrisos negros como os seus a preenchia e dissipava duvidas que ao final dos dia sde trabalham vinham assombrar suas noites mal dormidas.

Sem a pressão de estarem constantemente na mesma escola ou coordenando o grupo do qual as duas faziam parte, uma amizade entre Maria e Adimu floresceu. Com o passar do tempo, elas se permitiram ser amigas, começaram a se encontrar, agora fora do ambiente de trabalho, inicialmente para discutir ideias de educação, mas logo se deram conta de que os encontros eram mais sobre estar juntas do que sobre qualquer outra coisa.

Adimu estava questionando cada vez mais sua metodologia estruturada, as horas no transporte público entre a casa e a escola - que constituía uma longa jornada - eram preenchidas por dúvidas sobre o controle que tentava manter sobre tudo: suas escolhas académicas, sua carreira, seu relacionamento com Pedro... tudo fora planejado, ponderado e executado, tudo era carregado de certezas definitivas, mas quase que de repente, não era mais...

A primavera chegou, e com ela, a certeza de que algo novo estava nascendo entre Adimo e Maria. Em uma dessas tardes dos encontros de Adimo e Maria, sentadas em um banco de praça, Adimu e Maria sustentavam um silêncio que era gostoso e costumeiro entre ambas, de estar apreciando a companhia uma da outra após intensas conversas em um café ou confeitaria da cidade. Nesta tarde, porém este silêncio era denso e não se tratava do calor abafado que a primavera trouxera, a densidade estava por conta da certeza de algo, algo que nenhuma das duas dizia - quase como que por acreditar que ao não falar, não existia.

Uma brisa leve passou por ambas e Adimo respirou aquele ar como quem tomava fôlego, se virou para Maria, seu olhar profundo, e disse com a assertividade que lhe era característica: "Eu estou me apaixonando por você". Houve um silêncio pesado, mas ao mesmo tempo cheio de significado.

Maria sentiu o calor subir ao seu rosto, poderia ser o abafado calor da primavera, mas seu coração batia rápido e descompassado. "Eu também", sussurrou suavemente. "Mas não sei o que fazer com isso."

Aquela tardeOnde histórias criam vida. Descubra agora