É a terceira xícara de café que encho dentro da mesma hora. Eu nem gosto de café, eu só queria um jeito do amargo e quente líquido preto descesse pela minha garganta levando junto esse nó que não me deixa respirar. Se esse gosto fosse tão amargo quanto ao que sinto quando retorno meus olhos para o quarto a minha frente... pelo menos poderia colocar a culpa no café.
Retiro um quadro que estava pendurado acima da cabeceira da cama. Estava lá há tanto tempo que a tinta envelheceu ao redor da moldura o tornando um fantasma retangular com um prego enferrujado no meio. Sera que também vai doer assim quando eu voltar aqui amanhã para pintar a casa e acabar com toda lembrança tatuada nessas paredes?
Cada passo que dou aqui dentro é um flashback seu, fios ruivos, risada alta, pés descalço. Você era toda a música que existia no mundo, queimando o jantar, fazendo panquecas, inundando a casa enquanto lavava a louça. Quanta vida podia existir dentro de uma pessoa só? Eu me tornei um figurante no mundo seu. Eu só não sabia que se você fosse embora, eu continuaria aqui, repetindo suas frases, ouvindo suas músicas, refazendo seus trejeitos cada dia com menos precisão, cada vez menor, desbotada, magra e sem brilho. Uma versão infeliz de alguém que amou você.
Cada coisa que coloco na caixa é uma vontade absurda de te ligar. Lembra quando nos mudamos pra cá? A gente tava de saco cheio de desempacotar e não via a hora de deixar tudo em seu devido lugar pra começar a brincar de casinha. Nossa casa, minha e sua. Agora meu desejo é que a gente tivesse ido mais devagar, será que a gente pode deixar uma caixa pra amanhã? E amanhã a gente deixa ela no canto mais uma vez, assim a gente nunca termina de se mudar, assim todos os dias é o nosso primeiro dia na casa nova. Até a caixa deixar de ser novidade, até só ter coisas minhas, até você se cansar da minha desordem, até você me fazer abrir a caixa, até ser a ultima coisa que tem a ver com a gente, e a primeira que tenha a ver comigo, sem você.
Enquanto tiro as roupas do armário, me sinto abrindo um buraco no chão, cavando com uma pá uma cova bem funda. Seus cabides estão vazios, suas coisas foram desaparecendo antes da gente. A cada discussão em que a paciência ficava mais curta, a cada período sem nos falar que ficava cada vez mais longo, a cada vez que eu te amava mais, eu ficava mais fraca, dependente, refém de você e você se tornava mais forte, mais ácida, confiante demais e sem medo de me perder. Você percebeu? quando eu tentei fingir que era forte e durona como você e brincar de quem aguentava mais tempo sem conversar, percebeu que o mundo se partiu em mim e eu fiquei pra fora do seu? Eu sei de quem é a cova que estou cavando, eu só não quero entrar nela. Não agora, não antes de encher aquela caixa, a última caixa.
Acabou o café.
Estou encarando a janela da cozinha, a casa está perdendo a luz natural do dia. Eu adorava aqui.
Aquela árvore grande que fica do outro lado da rua me lembra você, gosto do contraste azul do céu se erguendo de trás dela, nessa hora do dia parece o azul dos seus olhos, mas em questão de minutos se tornam sombrios. Isso também me lembra você.
Acendo o interruptor e não tem luz. Cortaram a energia há mais de 1 ano. Eu devia ter vendido a casa naquela época, mas continuei vindo aqui. Sei lá, acho que no fundo eu tinha esperança de te ver aqui. Imaginei tantas vezes a cena de entrar por aquela porta e te encontrar de pé na sala, tão triste e arrependida quanto eu, com tanta saudade a ponto de deixar sua nova cidade e voltar pra casa, voltar pra mim. Mas isso não aconteceu, apesar de eu ter sonhado tantas vezes a ponto de não saber se foi uma lembrança real, ou só mais uma tentativa da minha mente de me mostrar que não importa o quanto a gente tente, nós não vamos ficar juntas.
Guardo na última caixa coisas que não são minhas, mas também não são suas, não mais. Você prefere que eu as jogue no lixo a ter que receber pelo correio algo que te lembre da gente, ou porquê você apenas não precisa mais delas e eu entendo, mas no fundo meio que espero que seja porque essas lembranças te torturem, que seja porquê você perde o ar quando alguém trás meu nome a tona numa conversa de bar, que você olhe ao redor da pista de dança me buscando quando minha música favorita toca no salão, que você congele do outro lado da plataforma quando o trem passa e por um milésimo de segundo você acha ter me visto no vagão, que você chore no chuveiro como uma maluca depois de um dia pesado e difícil sabendo que não tem mais a rota até mim pra se acalmar. Ou só comigo acontecem coisas assim? Sou só eu que leio os mesmos livros, assisto ao mesmo show e vejo o mesmo filme?
Você não quer receber a caixa e por orgulho prometi que nunca mais procuraria você, sei que apesar de tudo que eu já disse, todos os dias me engasgo, mordo a língua, me corroo por dentro como ferrugem caindo na corrente sanguínea, me consumindo progressivamente e espalhando a sensação pesada por tudo o que eu sou e pra tudo que eu vejo... Porra, Chloe ainda há tanto que eu quero te dizer.
594 dias. Fazem 594 dias desde que botamos um fim em tudo que tinhamos. E o que nós tinhamos? Eu não consigo me lembrar se foi real, eu não consigo enxergar o que era tão incrível assim que me fez acabar como um fantasma nos cantos, olhando pra essa caixa e lamentando o quão doloroso é não te conhecer mais.
Às vezes tento me lembrar do que estava fazendo antes de você entrar na minha vida, o que eu gostava? qual era minha rotinha? No que eu pensava, quais planos eu tinha? Eu forço e forço e não vejo nada, não sei quem eu era antes de conhecer você. Mas eu me lembro bem do dia que descobri que te amava e quanto eu desejei ser correspondida, porque aquilo que eu sentia era grande, era algo que valia a pena arriscar tudo... Valeu a pena pra você, Chloe? Valeu toda aquela lágrima, a saudade, a distância, o dinheiro, valeu viver 11 meses e passar os próximos 594 dias tentando se recuperar e encontrar um jeito de continuar vivendo? 594 dias são 1 ano, 7 meses e 16 dias, é engraçado porque eu imaginava como seriam os próximos 10 anos ao seu lado, os 20 e os 30 depois dele, onde moraríamos, os filhos que teríamos, as viagens que faríamos. Agora eu tenho mais tempo chorando por sua causa do que sendo feliz ao seu lado. Será que valeu mesmo a pena?
Você deve me achar estúpida toda vez que reapareço na sua barra de notificação com um discurso imenso do quanto está sendo difícil esquecer você, mas o que é mais estúpido em mim é que eu faria tudo de novo, eu voltaria no tempo e te amaria daquela forma porque você foi o amor que eu busquei por todos os anos da minha vida, você foi a resposta pra tanta coisa antes de me deixar na escuridão dessa casa vazia e mesmo com tanto motivo pra virar as costas e fechar essa porta pra sempre, eu ainda sinto tanto a sua falta, tanta saudade de você, da sua voz, do seu cabelo, saudade do som da sua risada antes de descobrir o quão assustador foi te ouvir gritar comigo pela primeira vez. Ainda assim eu faria tudo de novo. E eu me odeio por isso.
594 dias são mais 14200 horas, é engraçado porque no passado eu costumava sentir ciúmes do tempo que não passava com você, sentia inveja de qualquer um que recebia sua atenção, qualquer noite que passava sem sua ligação, tinha raiva de cada minuto de silêncio seu e agora eu tenho isso, tenho o silêncio seu pelo resto da minha vida... E nesse tempo não desejo que você seja feliz, tão pouco que você encontre um novo amor e que ele seja recíproco, que você encontre tudo que não achou em mim... Eu estaria mentindo se te quisesse feliz com outro alguém.
Passo a fita para selar a caixa, penso em qual pilha devo coloca-la: a que vai para o caminhão de mudança ou a que vai pro caminhão do lixo. Afundo a pá na terra mais uma vez. Eu também não sei a qual pilha pertenço. Enquanto aperto a caixa com força contra o peito, o farol de um automóvel alcança o lustre sob a minha cabeça. Os cristais azuis como luz da lua refletem por toda a parece da cozinha, eu me lembro de quando dançamos assim, achei que o lustre nos iluminaria pra sempre... Eu quero te deixar aqui com a caixa, nessa casa, onde de vez em quando um carro passa e ilumina o lustre, onde as vezes as nossas sombras dançantes correm pelos corredores, onde tudo começou e deveria terminar. Mas eu não vou. Invés disso coloco o pacote no carro, e apoio minha mão sobre ele toda vez que passo por uma lombada e não quero que ele caia no chão. Era esse cuidado que eu gostaria que você tivesse tido com o meu coração, um coração frágil numa caixa, onde você o deixou? Será que guarda no fundo da estante ou o esqueceu empoeirado nas gavetas vazias da casa que fica para trás no meu retrovisor?
Eu quero dirigir até esquecer o caminho de volta, esquecer o nome dessa rua, a cor do muro, esquecer como a gente parecia tão bem juntas, mas tudo que eu faço é lembrar, eu lembro de tudo. Lembro de você deitada suavemente em meu peito, aconchegante como uma cama de lã no mês de dezembro na cidade mais fria do mundo, eu me sentia alguém especial toda vez que seu olhar batia em mim, agora eu luto para conseguir respirar deitada no fundo da madeira tentando aceitar o peso da terra que cai sobre mim, mas por dentro eu puxo todo o fôlego que me resta e grito e grito e grito: "Não me deixe enterrada aqui!" Mas já estou, não estou?
com amor, beca mitchell.
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i wanna leave you, but i won't
Fanfictionapenas pensamentos que tive com o novo clipe da Ashe de i wanna love you (but i don't) e coloquei a fodida da beca pra sofrer pela chloe. mas isso não é uma fic.