Prólogo

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Eu sempre fui boa em desaparecer. Movimentos rápidos, silenciosos, invisíveis. O sangue escorrendo pelas minhas mãos já não incomoda mais como antes. No começo, eu contava os corpos. Agora, não mais.

O som do último suspiro ainda ecoa na minha mente.

Fico parada, apenas observando o corpo ensanguentado no chão, imóvel, sem vida. Não sinto nada. Nem remorso, arrependimento ou alívio. Só silêncio. O tipo de silêncio que já tomou parte de mim como uma segunda pele. O sangue se espalha devagar pelo chão, como se fosse uma pintura artística. Quase bonito.

Começo a andar.

A primeira vez que matei, eu tremi. Perdi minhas forças, meus braços e pernas não mexiam, até minha respiração parecia errada. Pensei que me arrependeria e nunca mais fosse fazer de novo, ou que nunca me acostumaria. Mas agora... agora é diferente. Tudo mudou. Já faz tempo que não lembro como é me sentir sem esse peso nas costas, já não sei como é ter uma vida "limpa".

Talvez nem exista outra versão de mim. Talvez essa seja a única que sobrou.

O trabalho é simples. Um corte preciso, um movimento limpo, sem dor para mim, pelo menos. Eu já me acostumei a ser a mão invisível que silencia vozes indesejadas. É isso ou ser devorada pelo mundo.

Pego a faca da mesa, limpando cuidadosamente a lâmina, como se fosse algo frágil, algo que precisasse de atenção. Ironia, talvez, que uma ferramenta de assassinato precisasse de tanto cuidado. Mas é assim que as coisas funcionam no meu mundo. Um erro, uma distração e você vira o próximo corpo estirado no chão.

Guardo a lâmina no compartimento do meu casaco, e minha mente está ficando distante da cena à minha frente. O sangue, o corpo, o quarto —­ tudo isso vai desaparecer, como sempre desaparece. E amanhã, ninguém se lembrará dele, mas eu vou.

É sempre assim, as pessoas prometem que nunca esquecerão uma das outras, mas, no final, nem se lembram de quem você era.

Fecho os olhos por um momento, deixando a frieza me preencher como de costume. Às vezes, me pergunto se ainda sou capaz de sentir qualquer coisa. Se algum dia fui.

As ruas lá fora estão movimentadas. Carros, vozes, vidas normais seguindo como se nada tivesse acontecido. Ninguém desconfia que, enquanto eles riem e brindam lá embaixo, o homem à minha frente já está morto.

Lá fora, sou apenas mais uma pessoa qualquer, sem mérito nenhum entre a sociedade, um corpo sem nome, sem rosto, sem utilidade. Aqui dentro, sou outra coisa. Algo que eles nunca vão entender. Algo que, talvez, eu mesma não entenda mais.

Saio do prédio antes que alguém veja. O ar da noite é gelado, mas isso não me incomoda. Estou acostumada. Sempre estive. Ninguém percebe enquanto me afasto, os passos rápidos, calculados, sem deixar rastro. Mais um trabalho feito, mais uma alma levada.

Enquanto viro a esquina, meus pensamentos já estão longe. A sensação de vazio volta, como sempre volta depois de cada missão. Eu deveria sentir alguma coisa, qualquer coisa. Todos sentem, por que eu não? Mas a única coisa que resta é a certeza de que, amanhã, haverá outro nome. Outro rosto. Outro fim.

E eu estarei lá, como sempre estive.

Entre Lâminas e BeijosOnde histórias criam vida. Descubra agora