Vazio

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Jenny
Eu me sinto como se estivesse vivendo em uma pintura abstrata, uma tela de tons de preto e cinza, onde cada objeto é uma sombra de um passado que ainda me persegue. Meu apartamento é um reflexo desse estado emocional, um espaço que parece estar eternamente à beira da noite. A decoração é uma combinação de preto profundo e cinza claro, criando um ambiente que é ao mesmo tempo sofisticado e opressivo. As paredes são escuras, quase como se absorvessem a luz, e os móveis são minimalistas, sem qualquer cor que possa oferecer um alívio para a paleta sombria que dominava o ambiente.
Cada vez que olho ao redor, a sensação de estar perdida e isolada se torna quase tangível. A ausência de cores vivas é uma metáfora visual para a ausência de cor em minha própria vida desde que saí. Os poucos toques de luz que existem são cuidadosamente posicionados, lançando um brilho fraco e frio que apenas acentua o contraste entre a escuridão e a claridade. A sala de estar é um espaço amplo, mas o silêncio aqui é esmagador, preenchido apenas pelo som ocasional da minha própria respiração e pelos ecos da minha mente inquieta.
A cozinha, que é uma extensão do mesmo tema monocromático, parece ser uma sala de operações silenciosa. Os eletrodomésticos e utensílios, todos em tons de prata e preto, estão sempre em perfeitas condições, mas raramente são usados. A comida é uma necessidade mínima e, na maioria dos dias, me contento com o básico, sem a necessidade de preparar algo mais elaborado.
Hoje, Giorgina acabou de entrar pela porta com uma sacola de bolinhos. O som da chave girando na fechadura e o estalo da porta se abrindo foram como uma pequena interrupção na monotonia do meu dia. Ela entra com um sorriso, tentando iluminar o ambiente com sua presença vibrante, uma cor inesperada no mar de cinza.
- Jenny, trouxe algo para animar o seu dia — ela diz, a voz dela cheia de uma leveza que contrasta com a gravidade do meu espaço.
Eu olho para a sacola de bolinhos com uma mistura de curiosidade e desinteresse. A doçura dos bolinhos parece quase uma ofensa ao ambiente sombrio que construí ao meu redor. Giorgina se move pela sala com uma familiaridade que é quase reconfortante, mas também um lembrete doloroso da vida que eu abandonei.
- Obrigada, Giorgina — eu digo, minha voz soando fraca e distante. — Eu realmente não sei se posso comer agora.
— Você tem que se alimentar, Jenny. – Ela coloca a sacola na mesa da cozinha e se vira para mim com um olhar de preocupação. - Não é saudável ficar assim, enclausurada. Além disso, eu trouxe esses bolinhos especialmente para você. Talvez eles possam trazer um pouco de cor à sua vida, mesmo que temporariamente.
Sua presença é um lembrete da vida que eu abandonei, mas também um sinal de que ainda há pessoas que se importam, mesmo quando eu tento me isolar. Eu me levanto lentamente e me aproximo da mesa, pegando um dos bolinhos. O gesto é simbólico, uma tentativa de romper com o padrão de frieza e solidão em que me imergi.
-  Vou tentar — eu digo, forçando um sorriso que não chega aos meus olhos.    -  Obrigada por estar aqui, Giorgina.
Enquanto ela se instala na cozinha, conversando sobre coisas triviais e tentando manter a leveza, eu sinto um turbilhão de emoções dentro de mim. A verdade é que a cor do meu mundo está há muito desaparecida, substituída pela sombra e pela introspecção. Mas, naquele momento, com Giorgina ao meu lado, uma parte de mim se pergunta se ainda é possível encontrar uma maneira de trazer de volta um pouco da cor que perdi.
Os bolinhos são pequenos passos, pequenos momentos de normalidade em meio à escuridão. E, apesar de toda a tristeza e complexidade que sinto, talvez esses momentos possam, de alguma forma, ajudar a iluminar um caminho para fora desse lugar sombrio onde me escondi.
Enquanto Giorgina se acomodava na cozinha e começava a preparar uma xícara de chá para ambas, eu me sentei na mesa, os bolinhos de chocolate à minha frente, quase como se fossem um item decorativo em vez de algo comestível. A sensação de ter alguém por perto era uma distração bem-vinda da imersão contínua em meus próprios pensamentos, e Giorgina parecia determinada a trazer alguma normalidade de volta à minha vida.
- Então, como estão as coisas no trabalho? — Eu perguntei, tentando redirecionar a conversa para algo mais leve e também para desviar a atenção do estado melancólico em que eu me encontrava.
Giorgina começou a falar sobre os contratos que estava gerenciando para nossos clientes, descrevendo com entusiasmo as novas oportunidades e desafios que surgiam. A conversa era uma pequena âncora em meio ao mar de tristeza em que eu estava navegando. Embora não estivesse totalmente imersa no assunto, as atualizações de Giorgina me davam uma sensação de normalidade, uma conexão com um mundo que parecia estar em movimento, mesmo que eu estivesse estagnada.
- E você, Jenny? Como está lidando com o trabalho remoto? — Giorgina perguntou, com um tom de curiosidade genuína.
- Está indo. – Eu respirei fundo, olhando para o ambiente ao meu redor.            - Trabalhar de casa tem suas vantagens e desvantagens. Posso controlar melhor meu ambiente, mas às vezes a solidão e a falta de interação podem ser esmagadoras. O trabalho em si está indo bem, mas a ausência de qualquer contato humano real é difícil de ignorar.
- Eu entendo. – Giorgina assentiu, compreendendo. - É um desafio ficar isolada por tanto tempo. Mas você está fazendo um ótimo trabalho com seus projetos. Não é fácil manter o ritmo quando se está sozinho, mas você está se saindo muito bem.
- Giorgina, preciso te pedir uma coisa. – Então, mudamos de assunto para um tópico que havia se tornado crucial para mim. - É importante que você mantenha tudo isso em sigilo. Ninguém deve saber onde estou ou o que estou fazendo. Eu realmente quero que isso continue sendo um segredo.
- Jenny, você tem minha palavra. Ninguém vai saber. – Ela me olhou com uma expressão de seriedade. - Mas me diga, alguém ainda se lembra de você? Ou ouviu falar de você?
Essa pergunta, embora aparentemente simples, era carregada de significado. Eu sabia que minha ausência havia criado um buraco em muitos lugares, mas a ideia de ser esquecida, ou pior, ignorada, me incomodava profundamente. Eu me isolava, mas queria ser lembrada e o fato de ter ficado fora por cinco meses e ninguém, mas me procurar me dava uma dor no peito e um bolo na garganta.
- Eu realmente não sei. Às vezes, me pergunto se ainda há algum eco do que foi minha vida. Eu vejo as notícias e a vida dos outros seguindo em frente, mas não tenho ideia se alguém ainda se lembra de mim de uma forma significativa. Eu tentei me distanciar o máximo possível, mas o medo de ser esquecida é constante.
- Sei que deve ser difícil pensar assim. Mas, por mais que seja doloroso, as pessoas têm suas próprias vidas e suas próprias preocupações. – Giorgina olhou para mim com empatia, como se tentando encontrar as palavras certas para consolar-me. Era até estranho ver ela assim, mas com o tempo descobri esse lado dela que também é legal, melhor do que o lado durão, que eu também admirava. - Às vezes, pode parecer que a vida continua sem você, mas isso não significa que você foi esquecida. Você fez uma marca na vida das pessoas ao seu redor, e isso não desaparece facilmente.
A conversa continuou, com Giorgina tentando manter o tom leve e positivo, enquanto eu lutava para encontrar alguma forma de conforto nas suas palavras. Apesar do esforço dela para manter a conversa focada em temas de trabalho e nas minhas preocupações atuais, havia um subtexto de tristeza e incerteza que pairava no ar.
- Ele ainda pergunta por mim? – não queria fazer essa pergunta, não queria trazer o nome dele à tona. Todas as vezes que o mencionava acabava ficando triste. – Vi a foto que ele postou com aquela garota ruiva, estavam viajando?
- Acho que não devia se preocupar com ele, se lembre que ele foi o babaca que te tratou mal. – ela parou com a faca no ar se esquecendo de cortar os bolinhos, provavelmente não fazia ideia de como isso a deixava assustadora, ainda mais com esse tom de enfurecimento. – Sim, ele está com ela e com várias outras, estavam na praia se divertindo e nem se lembra da sua existência.
- Isso machuca sabia?
- é para machucar mesmo, esquece esse otário! Você é bonita, inteligente e tem um trabalho incrível. Esquece esse idiota que não consegue parar em relacionamento nenhum, que fica pulando de mulher em mulher só porque não suporta a própria companhia.
Assenti com a cabeça e me forcei a morder um bolinho e com ele era ruim tinha sabor de decepção misturando com o nó da minha garganta forçando o a sair, mas só me sufocava. Isso, essa sensação é horrível.
À medida que o chá esquentava e os bolinhos começavam a desaparecer, eu sentia uma leve sensação de gratidão pela presença de Giorgina, mesmo que eu não pudesse completamente afastar a sensação de vazio que ainda pairava sobre mim. Conversar sobre trabalho e manter o segredo parecia ser uma forma de manter algum controle sobre minha vida, mesmo que, por dentro, eu estivesse lutando para encontrar uma maneira de seguir em frente e encontrar um propósito novamente.


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