28. Um dia da caça, e outro do caçador

128 16 0
                                    

Ao voltar pra casa, escutei Roy fazer suas típicas brincadeiras e piadas; parecia estar mais tranquilo. Mas ao abrir a porta, vi mudar sua expressão de brincalhão para mau humor. Revirei os olhos e entrei mudo.
— Onde esteve? — pergunto Robert.
— Com uma amiga — respondi.
O clima da casa estava estranho. Liz e Ben estavam inexpressivos e quietos; Rob também estava inexpressivo, e fingia não se importar ao temperar seus pratos finos; Roy me encarava denodado.
— Só eu não posso sair... — resmungou Roy.
Robert ignorou o comentário e continuou com seu hobby.
— James já saiu duas vezes hoje — continuou ele.
Eu sempre tive uma certa má sorte de receber provocações. Nunca ninguém ficou quieto no canto enquanto me odiava.
— Roy, por favor, não comece agora — disse Rob.
— Por que ele pode e eu não?
— Estamos tentando te ajudar, entenda que é para o seu próprio bem!
— Eu já disse que não sou viciado! Entendam isso também!
— A primeira fase de um viciado é a negação — comentei.
Ele me encarou, com um certo ódio no olhar.
— Vou ficar preso aqui pra sempre, é isso?
— Você podia colaborar um pouco...
— Mais do que já estou colaborando? Não posso nem ir à faculdade, não posso ir ver minha namorada, estou trancado aqui há quase duas semanas, mas não por que quero ou preciso de ajuda, e sim pra vocês verem que não sou viciado, posso me controlar; até agora nem cheguei perto da porta.
— Continue assim.
— Qual é? Posso ao menos ir ver Veronika?
— Ela pode vir.
Ele sentou no sofá, emburrado.
— Já vou subindo — comentei. — Boa noite.
— Boa noite — todos responderam. Menos Roy.

No dia seguinte, me preparei para ir ao jantar com a família de Jenny. Com medo de me atrasar, cheguei um pouco mais cedo do que o combinado.
Toquei a campainha, uma jovem mulher abriu a porta.
— Você deve ser James.
— Sim senhora.
— Sou Rachel Parker, mas da Jen, é um prazer te conhecer.
— O prazer é todo meu.
Ela sorriu, e abriu a porta pra eu entrar.
— Jen, você não havia me dito que ele é tão bonito! E educado!
Fiquei sem palavras. Vi Jenny enrubescendo, ao caminhar até nós.
— Desculpe a família meio louca — ela cochichou pra mim. — Vem, o jantar está quase pronto.
Engoli em seco. Jantar, essa palavra me causava arrepios. Eu tinha certeza de que eu iria me arrepender muito disso depois.
Harold estava sentando em uma poltrona na sala, parecia estar mais tranquilo do que na noite passada.
— Boa noite — saudei.
— Sente-se, rapaz — disse Harold. — Cuidado com o meu tapete. — Olhei para baixo, havia um tapete persa impecável. —Enquanto o jantar não fica pronto, vamos falar sobre você.
Eu não sabia se aquele era mesmo seu jeito estranho de conversar, ou se era uma tentativa de me intimidar. Se fosse, estava funcionando.
Sentei-me em um sofá e Jenny em outro.
— Então, James; você trabalha, estuda?
— Eu pretendo voltar a fazer a faculdade no ano que vem.
— Qual curso quer fazer?
— Ciências Biológicas.
— Excelente escolha. Jenny gostaria de fazer Medicina Veterinária, mas ainda não sabemos por quanto tempo ficaremos na cidade, e eu tenho outros planos pra ela.
Olhei de canto pra Jenny, ela não parecia feliz com isso.
— Quais os planos? Se me permite perguntar...
— Continuar a tradição da família, é claro.
— Tradição?
Jenny ainda não tinha me falado sobre isso, olhei de canto novamente, sem que ela percebesse, e vi suas pernas tremendo freneticamente, estava nervosa.
— Sim. Jenny não te disse?
— Acho que não...
"Droga, por que ele tem sempre que tocar neste assunto?" — Pensava ela.
— Fabricamos armas! De todos os tipos. Essa tradição é passada há muitas gerações em nossa família.
Engoli em seco novamente.
— Interessante.
— Depois te mostro meus exemplares... Aliás, uma delas está aqui — disse, se levantando da poltrona e pegando algo ao lado de um armário. — Rifle calibre 38 — apontou pra mim. Fiquei duro e ele riu.
— Não se preocupe, não está carregada. É claro que deixo sempre carregada, mas tive que usar as munições numa ultima visita que tivemos aqui.
— Pai! — repreendeu Jenny.
— Brincadeirinha. — Ele sorriu.
— O jantar já está na mesa! — gritou Rachel da sala de jantar.
"Ufa, já era tempo!" — pensou ela.
O cheiro de carne temperada entrava pelas minhas narinas, me forçando a imaginar aquela situação de sofrimento desnecessário.
Enquanto caminhávamos até a sala de jantar, percebi os pratos prontos em cima da mesa, e o meu, com certeza estava lá, esperando por mim. Gemi baixinho.
Sentamos em frente aos nossos pratos; olhei a carne com desprezo, e depois olhei para o rosto de cada um para ver se perceberam a minha expressão desanimada. Mas todos estavam animados; a carne deveria ser muito boa para eles.
— Espero que goste — Harold sorriu pra mim, um sorriso maligno, parecia que sabia.
Cortei um pedaço e o espetei com o garfo, hesitei antes de colocá-lo na boca, — aquilo era tão fastio — mas quando coloquei, mastiguei rapidamente, — tão rápido que mordi a minha língua; já havia bastante tempo que eu não mastigava nada — do mesmo modo como fiz com os outros pedaços. Para quê comer devagar, se eu não sentia gosto algum? Então eu adiantei o meu sofrimento, pois eu sabia que dali a pouco eu iria colocar tudo para fora.
Minha garganta começou a coçar; estranhei, pois a coceira só era presente quando eu era humano.
— Nossa, comeu rápido; deve ter gostado. Modesta parte, minha mulher cozinha muito bem —comentou Harold.
— Estava uma delicia — menti.
— Presumo que queira mais.
— Não, obrigado; já estou satisfeito.
— Como um rapaz deste tamanho pode estar satisfeito?
Ele se levantou e colocou mais em meu prato. Gemi baixinho novamente. Era evidente que quanto mais eu comia, mais eu iria vomitar depois.
Minha garganta continuava coçando, e eu não sabia como parar. Desta vez comi devagar, arrependido por ter comido rápido antes.
Estava mais difícil de engolir; parecia que minha garganta havia ficado menor. Pigarreei.
A coceira estava aumentando; e a dificuldade de respirar começou a aparecer. Pigarreei duas vezes.
— O que tem tanto nesta carne? — perguntei como quem não queria nada. Minha voz estava modificada.
— Você está bem, James? — perguntou Jenny.
— Carne de soja, tomates, alho... — respondeu Harold.
— Alho?! — repeti, assustado.
Sim. A lenda era verdadeira. O alho contém substâncias químicas que nos causa irritações; como quem tem alergia severa. Imagine, como seria para essa pessoa andar em um campo cheio de poeira, flores e ervas daninhas. É igual, talvez pior.
— Parece estar incomodado com algo, James — comentou Harold.
— Tenho alergia a alho — tentei explicar.
— Seu pescoço está inchado, James. — Reparou Jenny.
Estava difícil de respirar; com certeza a mucosa de minha traquéia estava inflamada. Conforme eu respirava, ruídos vinham juntos, e minha tosse era seca e metálica. Eu estava com uma vontade imensa de vomitar, e uma pressão na garganta. Como se na bastasse, uma coceira intensa irritava o meu pescoço, e eu coçava sem parar como num círculo vicioso.
— James — Jenny se levantou de imediato. — Não faça isso!
A princípio não entendi o que ela quis dizer, mas então parei e logo senti sangue em meus dedos. A coceira era tão grande e incômoda que nem reparei quando arranquei minha pele com as unhas.
— Pai, leve-o no médico! Essa alergia deve ser grave.
— Claro, filha. Tranquem as portas, eu não demoro.
— Não tenha pressa — disse ela.
— James, venha comigo.
Harold puxou-me até o carro, e me fez entrar imediatamente.
Eu não conseguia parar, coçar era como uma necessidade. Eu arfava entre os dentes, parecia que a qualquer momento minha garganta ia trancar e então eu morreria.
É claro que logo, meu corpo iria se regenerar, mas quão assustador poderia ser para um homem ver outro homem ressuscitando? E lógico, ouvi dizer que essa era uma situação um tanto agonizante; nunca quis tirar minhas próprias conclusões.
Eu só precisava esperar essa alergia passar e torcer pra não morrer no processo.
Harold deu meia volta e paramos em frente a um porão. Absolutamente não era um hospital.
— Tenho o que você precisa — comentou ele.
Não consegui perguntar o que era, mas confiei. O que quer que fosse, não iria me curar, mas me daria tempo pra melhorar e escapar do hospital.
Era um porão velho, atrás de sua casa. A porta estava trancada, e pela dificuldade de Harold abrir, era evidente de que aquele lugar não era freqüentado há muito tempo.
Quando ele finalmente abriu, — o ver lutando contra a porta já estava me dando nos nervos — estava tudo escuro; por ser no nível abaixo do térreo da casa, a iluminação natural era inexistente, então ele apertou o interruptor que estava logo na entrada, e acendeu uma luz fraca, iluminando partes do porão.
Ele me fez descer a escada por primeiro, me colocando em sua frente, sem dizer nada. A reação do alho continuava a fazer os mesmo efeitos; a descida era inclinada, os degraus eram pequenos e o teto rebaixado. — Com o meu estado, eu me imaginei capotando escada á baixo.
Chegando ao pavimento pude notar que o lugar não era tão grande quanto parecia; por ser uma espécie de deposito da casa, o cômodo não era grande e nem enfeitado; a parede era de tijolo aparente e uma grande parte do local havia poeira acumulada. O lugar se tornava ainda menor, com a quantidade de coisas velhas que foram jogadas por lá ao passar dos anos; havia colchões, móveis quebrados, ferramentas, geladeira velha, e varias outras coisas; inclusive uma coleção de rifle que ele tinha ao lado de algumas maletas grandes.
Eu continuava a coçar o meu pescoço, e pude sentir meus dedos deslizando no sangue. Eu não tossia mais, havia menos pressão na garganta, a coceira estava diminuindo e eu já estava respirando com mais facilidade, para minha sorte. Mas os ruídos e a náusea ainda eram as mesmas.
Me virei para Harold, para dizer que eu já estava melhor; quando percebi que ele segurava um pano. Não sabia o porquê, mas senti um cheiro que me dava vertigem.
Antes que eu perguntasse, — eu ainda me sentia fraco — ele apertou o pano sobre meu nariz e minha boca. Minha visão ficou embaçada e vi tudo girando, e então a minha visão ficou turva e cai ao chão sem defesas.

Entre Nossas DiferençasOnde histórias criam vida. Descubra agora